CONSENSO DO RIO IDÉIAS GERAIS PARA UMA POLÍTICA MACROECONÔMICA DESENVOLVIMENTISTA CONVERGENTE DOS PAÍSES DA AMÉRICA DO SUL Colaboração da sociedade civil ao Mercosul e ao Conselho de Ministros de Economia e Finanças da Unasul Elaboração: Intersul, com participação dos economistas Luiz Gonzaga Belluzzo (coordenador), Denise Gentil, Miguel Bruno e José Carlos de Assis. Conjunto de proposições solicitadas pelo Intersul a um grupo de economistas, discutidas e aprovadas em encontro no Rio de Janeiro, em 7 de novembro de 2011. Objetivo O Intersul propôs a um grupo de economistas identificar as principais características de uma política macroeconômica estimuladora do desenvolvimento dos países da América do Sul, conciliando estabilidade de preços, crescimento e promoção do pleno emprego. A política deverá assegurar também estabilidade externa, eliminação da miséria e redução dos índices de concentração de renda e de riqueza, com aumento do bem estar social das populações. Premissas Três décadas de conformação das políticas macroeconômicas dos países sul-americanos ao neoliberalismo deixaram pouca margem de manobra aos governos regionais para buscar alternativas desenvolvimentistas. O padrão comum, com raras exceções, foi o de promover o Estado mínimo através de privatizações, restringir o endividamento e o investimento público e favorecer a suposta auto-regulação da economia dentro dos cânones da ortodoxia fiscal e monetária. Todavia, os acontecimentos recentes mostraram o fracasso dessa política, que resultou em crise nas próprias economias avançadas e em crescimento lento e instável nas regiões subdesenvolvidas e em muitos países em desenvolvimento, com altos custos sociais, dos quais apenas têm escapado países emergentes que se distanciam do padrão neoliberal. Onde houve efeitos virtuosos das políticas neoliberais para os países em desenvolvimento – por exemplo, na acumulação de superávits comerciais e de reservas – eles se deveram a condições internacionais favoráveis, notadamente o aumento das importações de commodities minerais e agrícolas por parte principalmente da China, e não às virtudes da política macroeconômica em si. Quanto às melhoras de indicadores sociais, eles resultaram de políticas deliberadas de distribuição de renda adotadas por alguns países, fora do marco neoliberal. Em síntese, eis os principais eixos dessas políticas: 1. Política fiscal restritiva independentemente do ciclo econômico e do nível da relação dívida/PIB; 2. Submissão às pressões do mercado para o pagamento da dívida pública, novamente de forma independente do ciclo econômico e do nível da dívida; 3. Política monetária restritiva, articulada à política fiscal contracionista, determinadas, ambas, pela busca de investment grade por agências privadas de classificação de risco; 4. Câmbio flutuante, a despeito de fortes oscilações desestabilizadoras da economia por parte de forças especulativas; 5. Liberação do fluxo externo de capitais especulativos; 6. Redução de direitos trabalhistas e previdenciários; 7. Abandono do planejamento público e das políticas industriais; 8. Liberação do comércio exterior com o abandono de práticas de proteção da indústria interna; 9. Controle indireto das políticas macroeconômicas internas pelas agências externas de classificação de risco; 10. Submissão a outros ditames do Consenso de Washington. Nem todas essas políticas foram aplicadas por todos os países sul-americanos ao mesmo tempo. Mas, a conjunção dessas medidas teve um efeito macroeconômico comum: a redução rápida e significativa da autonomia da política econômica dos Estados nacionais. Estes foram premidos a se tornarem o fiador dos processos de liberalização financeira e comercial, num contexto marcado pela ausência de uma estratégia consistente de desenvolvimento econômico. Sua lógica interna era clara: conforme o estipulado pela ideologia neoliberal, tratava-se de reduzir o espaço do Estado do bem-estar social e ampliar as oportunidades de lucro corporativo, diminuindo-se ao mesmo tempo a tributação dos ricos em nome da maior eficiência econômica e da competitividade externa. É notável que, exceto pela explosão de preços e quantidades exportadas de commodities, já mencionada, essas políticas produziram resultados pífios, até sua derrocada nos países ricos na crise de 2008, anulando os efeitos de emulação que tiveram nas décadas anteriores na América do Sul. O quadro internacional agora mudou radicalmente, e é por isso que se justifica essa proposta de uma nova política macroeconômica para a região. De fato, todo o mundo industrializado avançado está em crise financeira, fiscal e de demanda interna, submetendo-se à medicina do ajuste fiscal que classicamente recomendava aos países em desenvolvimento. Ajuste fiscal significa reduzir gasto público, salários e benefícios sociais para comprimir o mercado doméstico e gerar excedentes exportáveis. Numa situação em que todos os países ricos querem exportar mais e importar menos, é duvidoso que tais políticas tenham resultados positivos. Contudo, o fluxo das exportações dos ricos tende a buscar os países emergentes e em desenvolvimento, com o risco de um dumping industrial mundial que lhe venha destruir seu parque produtivo industrial. Países que têm uma base industrial estarão ameaçados, e países que não têm, mas aspiram a tê-la, estão igualmente em risco. Diante disso, no caso da América do Sul, é imperioso acelerar o processo de integração, pois dentro de um bloco econômico será possível proteger os mercados internos sul-americanos, sem ferir as regras da Organização Mundial do Comércio. Individualmente, qualquer país que recorra a barreiras comerciais corre o risco de discriminação e retaliações no mercado internacional. Num bloco, ele pode fazê-lo sem ferir tratados internacionais. Proposição Propõe-se uma estratégia macroeconômica de estímulo ao desenvolvimento econômico e social compatível com as necessidades sociais e o equilíbrio político dos países da América do Sul. Essa política, ou melhor, conjunto de políticas teria as seguintes características: 1. Retomada do princípio do planejamento público como instrumento estratégico para alcançar os objetivos nacionais de desenvolvimento econômico, eliminação da miséria, redução das disparidades regionais e da extrema concentração renda, mediante a busca de um sistema tributário justo e progressivo que aponte na direção do Estado do bem-estar social; 2. Política monetária que comporte a expansão da moeda de acordo com as necessidades do crescimento econômico com estabilidade monetária e tendo por objetivo último a máxima geração de emprego; 3. Atribuição ao banco central desse tríplice objetivo, para cuja execução ele terá liberdade operacional, sujeita a verificação de eficácia pelas comissões de economia e finanças do Congresso Nacional; 4. Controle fino da liquidez mediante a defesa pelo Banco Central, no open, da taxa de juros fixada conforme os objetivos em 1 e 2; a taxa básica de juros deve condicionar também o processo de internação ou retenção externa do fluxo de reservas, para compatibilizar esse fluxo com o nível de liquidez desejado; 5. Política cambial no regime semi-flutuante, entendido como a administração do câmbio mediante utilização das reservas internacionais para manter o valor externo da moeda numa faixa que promova a competitividade externa, sobretudo a baseada em bens de maior valor adicionado, assim como o crescimento interno; 6. Política fiscal anti-cíclica e pró-investimento do Estado para corrigir deficiências de infra-estrutura, admitindo-se, em situação de alto desemprego e alto índice de ociosidade no parque produtivo, aumento da relação dívida/PIB (como ocorreu sabiamente no Brasil com os investimentos de Petrobrás, Eletrobrás e BNDES financiados pelo Tesouro em 2009 e 2010); note-se que não existe razão teórica ou empírica para eliminar a dívida pública como fonte de financiamento do Estado, a não ser em condição de esgotamento da capacidade ociosa na economia; da mesma forma, trata-se de um viés ideológico inaceitável para países em desenvolvimento limitar a relação dívida/PIB a valores arbitrários, como aconteceu na Europa do euro sob o Tratado de Maastricht, hoje claudicante. A questão verdadeiramente relevante é a gestão de um endividamento público com caráter produtivo, isto é, a dívida pública deve ser utilizada, prioritariamente, para o financiamento do investimento público com potencial de aumentar a produtividade da economia. Macrodinamicamente, como o investimento público em infraestrutura eleva a taxa de investimento privado (efeito crowding in no médio e longo prazos), a base tributária se expande e a própria dívida pública tende a reduzir-se ou estabilizar-se. Atualmente, não é isso o que ocorre; o endividamento público nos países avançados e em desenvolvimento converteu-se no eixo da acumulação rentista, através de estruturas de revalorização da riqueza pouco ou nada conectadas às necessidades das atividades diretamente produtivas. Nesse contexto, não é surpresa que as finanças públicas encontrem-se subordinadas às finanças privadas, de acordo com as demandas dos detentores de capital e de grandes bancos e investidores internacionais. 7. Promoção do investimento de integração econômica, estruturando um novo modelo de desenvolvimento econômico e social ancorado na nova política macroeconômica aqui sugerida, nos termos propostos em projeto de lei em anexo, já em tramitação no Senado brasileiro e em discussão em entidades da sociedade civil de outros países da América do Sul; 8. Aperfeiçoamento e expansão do uso do CCR nas transações comerciais e de investimento na América do Sul; 9. Estruturação do sistema de financiamento de investimentos públicos e privados na América do Sul em torno do Banco do Sul, da CAF, do BNDES e de outros bancos públicos regionais, mediante um mecanismo próprio de avaliação de risco que desconsidere as agências externas de classificação, e que funcione como um selo de qualidade para investidores fora da região. Conclusão A crise financeira em curso nos países industrializados avançados não põe em risco apenas o futuro do capitalismo. Põe em risco o futuro da civilização. Mais do que essa crise, em si, são as políticas aplicadas para se tentar superá-la que ameaçaram arrastar o mundo para uma situação de estagnação com surtos de recessão, implicando dramáticas consequências sociais e políticas. É que estamos diante de uma evidente ressurgência neoliberal na Europa e nos Estados Unidos, materializada em fortes pressões internas por ajustes fiscais recorrentes com inelutável efeito recessivo. Os países que têm contornado a crise com relativo sucesso são os emergentes, notadamente a China e a Índia. É notável que a grande mídia não se tem dedicado a investigar a causa dessa performance, limitando-se a registrar dados. Entretanto a China, uma economia socialista de perfil capitalista, e a Índia, uma economia capitalista de perfil socialista, têm em comum planejamento público centralizado e sistema bancário quase inteiramente público. A diretriz do planejamento ganha imediatamente eficácia através do financiamento produtivo, não especulativo. Esta é a essência da mágica. Outro emergente, o Brasil, reduziu consideravelmente o impacto da crise em 2009 por efeito do influxo de crédito de seu sistema bancário público, 40% do sistema bancário do país, o qual cresceu 27%, enquanto a expansão do crédito bancário privado ficou em 4%. Se fosse depender apenas deste último, dificilmente a economia brasileira teria se recuperado. Entretanto, sequer a força combinada de todos os emergentes pode, em termos estritamente econômicos, funcionar como locomotiva do mundo. Mas os países emergentes podem ser um importante sinalizador de alternativas de política econômica. Na medida de seu sucesso, e do fracasso inevitável do novo surto neoliberal nos países ricos, é de se esperar um renascimento nestes últimos da opinião pública crítica mobilizando-se no sentido de reverter sua política economicamente ineficaz e social e politicamente suicida, destruidora de seu pacto social básico ancorado no Estado de bem-estar social. É que não há melhor argumento que fatos. Nosso intuito é, pois, oferecer aos formuladores de política econômica da América do Sul uma contribuição no campo das idéias para o estabelecimento de uma nova estratégia econômica para o continente. Ao mesmo tempo, estamos oferecendo às sociedades de região um conjunto de princípios que eventualmente sirva para alimentar o debate em torno de nossa situação presente e de nosso destino. Não podemos assistir passivamente a um processo que pode nos arrastar para o mesmo abismo em direção ao qual forças retrógradas estão empurrando vários países europeus. Sem uma estratégia clara de ação, estaremos condenados ao retrocesso econômico, social e político. Naturalmente, mesmo enquanto região, não estamos isolados em relação ao que acontece no resto do mundo, em especial nos países industrializados avançados. Embora não possamos influir diretamente nas políticas ali praticadas, podemos chamar a atenção das respectivas sociedades para suas contradições e incongruências que põem em risco a nossa própria estabilidade. Entre os países ricos, os Estados Unidos enfrentam um problema, sobretudo, de dívida privada, remanescente do colapso do mercado imobiliário. Como emissores da moeda mundial, seu problema de dívida pública é de ordem sobretudo ideológica; são, pois, razões políticas que impedem os Estados Unidos de agirem decididamente por sua recuperação e a recuperação mundial. Já na Europa do euro, onde quebraram vários Estados para que fossem salvos os bancos, a dívida pública tornou-se um foco permanente de especulação. Em ambos os casos, políticas fiscais restritivas são ineficazes para o relançamento das economias. Assim, nos parece inevitável alguma forma de socialização dos bancos como preliminar da reestruturação das dívidas com alguma perda por parte dos investidores, para possibilitar a retomada do desenvolvimento econômico e social sustentável em escala planetária. Assinaturas dos primeiros signatários Maria da Conceição Tavares, Luiz Gonzaga Belluzzo, Carlos Lessa, Luiz Carlos Bresser Pereira, Franklin Serrano, Denise Gentil, Theotônio dos Santos, Ricardo Carneiro, João Sicsú, Luiz Fernando de Paula, Luiz Pinguelli Rosa, Carlos Cosenza, Francisco Antonio Doria, Miguel Bruno, Luís Nassif, Darc Antonio Costa, José Carlos de Assis e Roberto Saturnino Braga.