Ontem, o presidente Renan Calheiros fez um balanço de sua gestão da Casa, neste ano. Uno-me às senhoras e aos senhores senadores que o cumprimentaram pelas medidas administrativas tomadas. Algumas duras, é verdade, mas necessárias.
Desse ponto de vista, não há dúvida de que o Senado agiu bem.
Como não tenho dúvida da dedicação, do empenho no trabalho das senhoras e dos senhores senadores no ano que finda.
Não há como negar a seriedade com que esta Casa lança-se às atividades. Há um desdobramento, uma multiplicação diária dos colegas para atender às tantas exigências do mandato.
Posso discordar das prioridades eleitas pela Casa e pelos meus pares, não posso, contudo, deixar de reconhecer a devoção, o desvelo das senhoras e dos senhores senadores.
Posso discordar, mas não há como negar que esta Casa é uma Casa de respeito e de trabalho.
Isso posto, peço vênia para olhar o ano que passou com os olhos das ruas, com os olhos do povo nas ruas.
Antes, quero eu mesmo fazer um aparte à minha fala.
Ontem, neste plenário, quando se devolvia o mandato de presidente da República ao seu pai, João Vicente disse que Jango fora derrubado não por causa daquele arrazoado tão repetido pelos golpistas e por nossa inefável mídia.
Jango foi derrubado por causa de sua proposta de Reformas de Base. Jango foi derrubado porque queria fazer a reforma econômica, a reforma agrária, a reforma urbana, a reforma fiscal, a reforma educacional, a reforma política. Jango queria uma profunda, radical, reforma do Estado brasileiro. Por isso ele foi derrubado.
No entanto, meus caríssimos pares, se hoje, 49 anos depois, as Reformas de Base de João Goulart fossem propostas a esta Casa elas seriam novamente rejeitadas.
Senhoras e senhores senadores.
Ouvi, nessas últimas sessões do ano, um desfile de balanços otimistas de 2013. Segundo se diz, a tal da “pauta positiva”, que teria sido estabelecida depois das manifestações de junho, teria atendido as ruas.
O verbo no condicional é o mínimo de precaução que o Senado precisa ter ao olhar retrospectivamente as atividades do ano que termina.
A tendência a uma mirada complacente ao nosso trabalho não faz bem à Casa e muito menos ao país.
Não acredito que seja razoável que se listem na suposta “pauta das ruas” a aprovação da meia-entrada, o estatuto da juventude, a hereditariedade da concessão do serviço de táxi, a mini-reforma eleitoral que, além de consagrar as doações de empresas privadas e de concessionários de serviços públicos torna-as secretas.
Ah sim! A isenção de impostos para os CDs e DVDs, as alterações na distribuição de direitos autorais dos músicos, o enquadramento de advogados no Simples, a redução do número de suplentes de senadores, o controle do peso das mochilas dos estudantes.
Tudo isso –e muito mais- foi ensacado na dita “pauta da sociedade”.
Será que a sociedade ficou sabendo? E sabendo, sentiu-se contemplada?
Nunca é demais lembrar que a emenda constitucional do senador Jarbas Vasconcelos sobre a perda automática de mandato, em caso de condenação do parlamentar, só adentrou o gramado, depois de ter sido praticamente engavetada, porque, de repente, ela pareceu interessante a figurar na pauta da sociedade. Da mesma forma o meu projeto de Direito de Resposta.
Eu não sei se as ruas reivindicaram reforma política. Se o fez, respondemos com um pastiche. Eu não sei se as ruas exigiram que o Senado abrisse o voto. Se o fez, retorquimos preservando a metade do segredo. Eu não sei se as ruas desafiaram o Senado a manter, em relação ao Executivo, uma posição de independência, de altanaria. Se o fez, demos provas da nossa compulsão a submetermo-nos às vontades do inquilino do outro lado da rua.
Enfim, não vejo razões para festejos, encômios e parabéns.
A presunção da sintonia com os brasileiros, sua revolta e seus sonhos, não seria mera jactância?
Este é meu segundo mandato como senador. Somando os três anos deste aos oito anos do anterior são onze anos. Tempo suficiente para conhecer os limites desta Casa, de resto os limites de um Legislativo atrofiado pelo expansionismo do Executivo, diminuído pelas injunções do Judiciário e enfraquecido por sua própria inércia.
Diariamente, neste plenário, nas comissões, e nos meios de comunicação da Casa, vemos, ouvimos e lemos as mais afervoradas críticas ao desempenho do governo nas áreas da educação, saúde, segurança, infra-estrutura; e à eficiência e transparência da máquina pública. Diariamente.
No entanto, avançamos muito pouco na mudança dessa realidade tão martelada, tão espancada.
Por quê?
Porque tangenciamos o tal busílis da questão, o fulcro, o nervo do problema. Rodeamos, cirandamos em torno do que realmente interessa, do que é substancial, e seguimos em frente ocupados em remendar injustiças, em garantir direitos individuais, em mitigar as atrocidades provocadas pelas reformas neo-liberais, satisfeitos, com a consciência aplacada, por transformar miseráveis em pobres.
Cada vez mais, oposição e base do governo se parecem e se completam. E conspiram contra toda mudança que possa sacudir o país.
Nas últimas semanas, a oposição tem insistido nos “desmandos da política econômica do governo do PT”. A inflação, o superávit primário, os gastos públicos, o PIB, o câmbio, o tamanho do Estado têm sido os temas recorrentes desses discursos. A oposição não discorda dos tais fundamentos da política econômica, mesmo porque foi ela, no reinado de FHC, que os introduziu em nosso país, sob os auspícios do Consenso de Washington, do FMI, da banca.
O que a oposição (e a mídia que a lidera e vocaliza) quer é mais “responsabilidade” do PT no manejo desses ingredientes formadores da doutrina neoliberal. A divergência é de métodos, não de conteúdo.
Na verdade, este gracioso ano de 2013, de que agora se faz o balanço, marca a adoção pelo PT de alguns cânones de apreço da oposição, como as privatizações.
A privatização do petróleo do campo de Libra, talvez a maior reserva hoje conhecida no mundo; a privatização dos portos e dos aeroportos; parâmetros “mais generosos” para a privatização de estradas e ferrovias são exemplos desse “aggiornamento” do Partido dos Trabalhadores, em consequência, de nosso governo.
Enfim, no balanço das atividades do ano que termina, registre-se também a solidão cada vez maior da esquerda nesta Casa. Não tenho a pretensão do monopólio das posições de esquerda. Apenas não abro mão do que construí ao longo de minha vida.
Não há flexão, não há inflexação, não se rebola diante dos princípios. A queda do muro de Berlim, o fracasso da experiência do chamado “socialismo real”, o suposto “fim da história” não licenciam, não liberam a esquerda para a adesão às teses do neoliberalismo, entre elas, a ruína do Estado, o esmagamento da ideia de Nação.
A debilitação do Estado, a amputação de sua capacidade de induzir, sustentar, liderar o processo de desenvolvimento, notadamente em um país tão carecido, tão pobre e tão abissalmente desigual como o nosso, mais que um erro, é um crime contra os brasileiros, é a perpetuação das políticas compensatórias.
Quer dizer, 2013, foi o ano em que o Brasil perdeu mais forças ainda para se erguer da pobreza e do subdesenvolvimento.
Quando parece que vamos avançar, quando se vislumbram mudanças, a recaída não tarda. Cito alguns exemplos.
A PEC das Domésticas, cuja aprovação foi aqui comemorada com toda a refulgência, dorme agora na Câmara. Eu tenho a impressão, às vezes, que aprovamos certas matérias porque sabemos que vão ser engavetadas ou desfiguradas na outra casa.
A PEC do Trabalho Escravo que, na observação do senador Paulo Paim, pretende regulamentar o trabalho escravo e não extirpá-lo, mesmo assim, tomou, sabe-se lá, que caminhos.
Enquanto o trabalho escravo continua impune e pulsa e purga como uma chaga cancerosa, aprovamos toda sorte de pequenos agrados aos trabalhadores, nada substancial, brindes natalinos.
É notável a nossa capacidade de tergiversar, negacear e escapulir.
O senador Paulo Paim fez um equilibradíssimo relatório ao PL 122 que, originário da Câmara, pretendia tipificar e combater toda espécie de preconceito e discriminação. O PL 122 foi devidamente sepultado por esta Casa na noite da terça-feira, dia 17.
No afã inquisitorial de eliminar qualquer referência a gênero, à orientação sexual, chegou-se ao requinte de, no Plano Nacional de Educação, por acordo supra-partidário, suprimir-se o parágrafo quarto, do artigo terceiro da Constituição.
Que diz este parágrafo que causou tanta urticária em nossos ilustres senadores?
Este parágrafo diz que constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, entre outros, “ promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Foi a referência a quaisquer outras formas de discriminação que provocou o incrível surto de coceira em nossos ilustres pais da pátria.
Neste ano que agora se esvai, assim tão melancolicamente, de todo modo, esta Casa aprovou o meu projeto de Direito Resposta. Abstenho-me de falar sobre os muros de resistência que se ergueram em torno dele. Aprovou e remeteu à Câmara dos Deputados e lá dorme talvez um descanso eterno.
Essa, repito, tem sido uma fórmula eficientíssima de sepultar projetos. Aprova-se aqui com a garantia de que por lá não se vote.
Às vezes, nem precisa disso. Basta que se embace, que se dificulte o trâmite das matérias para neutralizar o que desagrada à maioria ou ao governo.
Alguém saberia responder em que buraco insondável caiu o meu projeto de Decreto Legislativo suspendendo o leilão de Libra? E meus pedidos de informações sobre as dívidas das Organizações Globo ao fisco? E minha proposta de distribuição aleatória das relatorias?
Aqui, quando projetos e requerimentos não morrem de morte morrida, morrem de morte matada; o que não faltam são instrumentos de execução.
Um outro assunto que passou pelas portas deste plenário e não entrou foi a iminência da assinatura de acordos bilatérias entre o Brasil e a União Européia. É um desvario; é a perda do controle do país sobre a sua economia, sobre as decisões estratégicas em relação ao nosso futuro.
Mas, salve, salve! O peso das mochilas de nossas crianças vai ser regulado.
Senhoras e senhores deputados, perdoem-me a amargura, o ceticismo. É que eu acredito na possibilidade de construção de um Brasil desenvolvido, forte, justo, culto, seguro.
Como já disse aqui algumas vezes: comecei muito cedo querendo mudar o mundo; estou velho para desistir.
Senhoras e senhores, até fevereiro, quando o carnaval chegar.