Esteve recentemente no Brasil, convidado pela Escola de Economia da Fundação Getúlio Vargas, um dos mais ilustres keynesianos da atualidade, o economista norte-americano Thomas Palley. Em um seminário, de que participaram, entre outros, os economistas Ricardo Carneiro e Luiz Gonzaga Belluzzo, ambos da Unicamp, Palley revelou-se pouco otimista em relação à conjuntura econômica mundial. Para ele, o mais provável é uma longa estagnação nos países desenvolvidos, e mais recessão. “ Acabou-se o tempo de recuperações rápidas dos países industrializados”, disse Tom Palley. E um dos motivos da lenta retomada é o fosso que se aprofundou, a partir dos anos 80, entre o crescimento dos salários e a produtividade, solapando assim um dos pressupostos para estimular a demanda, disse o economista norte-americano. Na verdade, Palley repetiu em São Paulo o que dissera no Paraná, em 2008, no seminário que o nosso governo estadual promoveu, logo na sequência da explosão da crise financeira global. Outro participante do seminário da FGV, o economista-chefe da Agência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento, o alemão Heiner Flassbeck, também considerou o divórcio entre os salários e a produtividade “como um fator crucial para explicar a dificuldade do mundo desenvolvido em retomar o crescimento”. É o que está acontecendo nos Estados Unidos e no Japão, exemplificou, acrescentando que “salários em alta são fundamentais para impulsionar a demanda”. É lastimável, deploro mais uma vez que esse tema vital para o enfrentamento da crise — que é o equilíbrio entre o aumento da produtividade do trabalho e o crescimento dos salários–, seja tão pouco debatido em nosso país, nesta casa, no Governo, na mídia, na academia, nos sindicatos. Pelo contrário, quando explodiu a crise financeira global, o que os nossos economistas -os Mailsons de sempre-, o que a nossa mídia –as Mirians de todos os dias- o que a nossa oposição –tartamudeando a nota só a que se acostumou–, o que aconselharam? Cortes. Cortes profundos, radicais, impiedosos. Cortes de gastos públicos, contenção salarial, das aposentadorias, dos programas sociais. Enfim, queriam que o Brasil adotasse as mesmas medidas que hoje estão sendo impostas aos gregos, aos espanhóis, aos portugueses e que os franceses acabam de rejeitar derrotando o parceiro implacável da da implacável senhora Merkel. Quando a crise arrebentou, em 2008, houve, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, um revival de Marx. O “Times” anunciou em manchete: “Ele voltou!”, relembrando as teorias de Marx sobre as crises cíclicas do capitalismo. Nicolas Sarkozy posou folheando “O Capital”. O papa Bento XVI reproduziu aquela óbvia observação sobre “grande capacidade analítica” de Marx. Na Alemanha, “O Capital” chegou ao topo dos livros mais vendidos. O “New York Times” e a revista semanal inglesa “The Economist”, o grande veiculo difusor, e guardião pressuroso, dos dogmas neoliberais também entraram na onda da ressurgência do velho Karl. No entanto, todos passaram ao largo de uma das teses centrais de Marx, a “mais valia”. Todos se deliciaram com a sua “ grande capacidade analítica”, como disse o papa, mas ninguém quis saber ou levou em conta suas análises sobre salário, produtividade do trabalho, poder de compra. Para os neoliberais aí já seria demais, um exagero. Faço aqui mais uma referência insuspeita, como insuspeitos parecem-me o papa, “The Times”, “The Economist” e o finado Sarkozy. Tenho em mãos um estudo sobre a questão salarial, publicado pela revista mensal do Departamento do Trabalho dos Estados Unidos, equivalente ao nosso Ministério do Trabalho. Intitulado “A lacuna entre produtividade e remuneração”, o estudo de Susan Fleck, John Glaser e Shwan Sprague mostra, através de gráficos irretocáveis, como a produtividade do trabalho foi descolando do crescimento da remuneração nos Estados Unidos, a partir da década de 70, com o avanço do neoliberalismo. Explicam os autores do ensaio: “O crescimento da produtividade fornece a base para a elevação dos padrões de vida; a remuneração real por hora é um indicador do poder de compra dos trabalhadores. O aumento da produtividade do trabalho –parâmetro de produtividade usado com mais frequência—reflete investimentos em bens de capital e tecnologia de informação e a contratação de trabalhadores com melhor qualificação. A capacidade dos empregadores de aumentar salários e outras remunerações está vinculada a aumentos na produtividade do trabalho (…)”. No entanto, ressalvam, nos Estados Unidos “(…) Desde a década de 1970, o aumento da remuneração por hora –real ou com base nos índices de inflação– não acompanhou o crescimento da produtividade do trabalho”. Esta cresceu, continuadamente, nas décadas de 80, 90 e nos primeiros sete anos deste século, mas os seus ganhos deixaram de ser repassados para os trabalhadores, aumentando-se, assim, a exploração dos assalariados e a concentração de rendas. Gráficos do estudo acompanham a evolução da produtividade e da remuneração por hora, do primeiro trimestre de 1947 ao primeiro trimestre de 2010. Até meados da década de 70, constata-se que as curvas produtividade-remuneração caminham muito próximas; a partir daí, cava-se uma voçoroca entre as duas linhas. Não custa lembrar o que aconteceu, paralelamente, no restante do planeta terra, especialmente nos países do Sul. Na sequência dos dois “choques do petróleo”, as chamadas “políticas de austeridade” são impostas países à fora. E tal qual acontece hoje com os primos pobres da União Européia, “política de austeridade” significava arrocho salarial -–com a redução dos aumentos ou cortes nos vencimentos e pensões– e a redução dos gastos públicos em saúde, educação, habitação, infra-estrutura e segurança. Contudo, não seria correto dizer que, da década de 40 aos meados da década de 70, tenha havido uma “justiça salarial”. Vê-se pelo estudo do Departamento de Trabalho norte-americano que o aumento da produtividade caminhou sempre um tanto acima do crescimento dos salários. Ainda assim, antes da apocalíptica arremetida de Reagan e Thatcher, era mantida uma relação, digamos, “civilizada” entre um índice e outro. Com as chamadas “desregulamentações trabalhistas”, a par do enfraquecimento da organização sindical, impostos pelo neoliberalismo, esse equilíbrio desaparece e os salários não acompanham mais nem o aumento da produtividade e nem a alta dos índices de preços de produtos e serviços. Os gráficos do estudo publicado pela revista Departamento do Trabalho norte-americano revelam ainda que, mesmo no período de desaceleração da economia dos Estados Unidos, entre 1973 e 1995 a produtividade do trabalho nunca deixou de crescer. Os salários, sim. O resultado desse descompasso leva à diminuição sequente e cada vez maior do poder de compra dos assalariados. É quando surge em cena a criatividade dos financistas, que engendram o famigerado “sub-prime”. Uma engenharia relativamente simples, tão simples quanto irresponsável. Já que o salário do trabalhador norte-americano vinha sofrendo uma antiga e sufocante compressão, para devolver-lhe o poder de compra, sem aumentar os vencimentos, criou-se o empréstimo de longuíssimo prazo, com juros naturalmente alentados. Do “sub-prime” aos derivativos, desses à especulação em escala planetária. A grande festa dos papéis. Como os preços de produtos e serviços ascendiam; como os juros ascendiam, mas os salários pouco ou nada se moviam, chegou o dia, o dia previsto pelos que não surfavam na maionese neoliberal, em que o trabalhador já não conseguiria pagar o financiamento da casa, do carro, da universidade dos filhos. E fez-se a sonora e poderosa explosão da financeirização da economia. Esse ensaio dos três economistas norte-americanos, todos integrantes do Departamento de Estatísticas do Trabalho dos Estados Unidos, é definitivo sobre as consequências do distanciamento entre o aumento da produtividade do trabalho e a remuneração do trabalho. Não há mágica, não há sortilégio. Não é fetichismo keynesiano, dos desenvolvimentistas ou dos marxistas. Sem aumentos salariais que se equiparem ou mesmo superem o aumento da produtividade, não há como fazer girar virtuosamente a economia. As receitas de austeridade fiscal, de que tantas vezes já provamos, e purgamos, e que agora empurram goela abaixo dos trabalhadores de alguns países europeus, são receitas de suicídio. É suicídio cortar salários e pensões. É suicídio reduzir os investimentos em educação, saúde, habitação, inovação tecnológica e infra-estrutura. A receita dos cortes, a receita dos “choques” disso e daquilo não é apenas uma receita de classe, da classe social que detém o poder político e econômico, é também uma típica receita dos medíocres.
Página IncialOcultosSenador Requião diz que incorporação da produtividade ao salário é antídoto contra a crise