No dia 26 de setembro, há menos de dois meses, 43 estudantes mexicanos, alunos de uma escola de formação de professores, foram sequestrados e assassinados por policiais, acumpliciados com traficantes, na cidade de Iguala, no estado de Guerrero. O desaparecimento e a execução dos estudantes comoveram o mundo e, por mais de mês, foram destaques do noticiário internacional.
Na madrugada do dia cinco de novembro, depois de terem anunciado a razzia pelas redes sociais, policiais militares paraenses, varreram a periferia da cidade de Belém em uma expedição de vingança pela morte de um membro da corporação, deixando um saldo de dez a 35 mortos.
Entre as vítimas do massacre, estava o estudante Eduardo Galucio Chaves, de 16 anos, que voltava da escola. Portador de necessidades especiais, Eduardo assustou-se com os tiros e, mesmo com dificuldade, pôs-se a correr e foi abatido com cinco tiros pelas costas.
Alguns dos executados receberam mais de 30 tiros,
Mesmo que a própria PM tenha apregoado a expedição, os assassinatos foram atribuídos à guerra entre traficantes. A mesma versão inicial para o desaparecimento dos normalistas mexicanos.
Parafraseando Caetano Veloso: Iguala é aqui. Com a diferença que as dez ou 35 execuções em Belém não ganharam a repercussão, quer nacional quer internacional, das execuções no México.
Lá e cá, os massacres serão rapidamente esquecidos, enterrados com as suas vítimas. Os massacres de ontem serão suplantados pelos massacres de hoje.
Um estudo, há pouco divulgado, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ONG que se dedica ao tema, revelou que nos últimos cinco anos a polícia brasileira matou, em média, seis pessoas por dia. Entre 2009 e 2013, foram 11.197 mortes provocadas pelos nossos “agentes da lei”.
Nos Estados Unidos, nos últimos trinta anos, a polícia matou 11.090 pessoas. Em trinta anos!
E olha que, segundo o Fórum, a letalidade de nossas polícias está caindo.
Essas estatísticas, no entanto, ressalva a ONG, são imprecisas, já que apenas 11 das 27 unidades da federação informaram os números pedidos pelo Fórum. E mesmo assim essas informações não são confiáveis.
Afirma o Fórum: “A maioria das policias do país não tem a prática de fazer acompanhamento na letalidade policial. Há uma subnotificação. Sabemos que é bem maior do que está registrado”.
Uma pista para comprovar essa subnotificação: calcula-se que, anualmente, 50 mil brasileiros morram assassinados. E, como no caso de Belém, do Rio de Janeiro, de São Paulo, de Salvador os massacres serão sempre atribuídos a conflitos entre bandidos ou à tal resistência seguida de morte, os famigerados “autos de resistência”, uma excrescência criada pela ditadura para mascarar as execuções e que sobrevive até hoje.
Assim como os 500 ou mais assassinatos havidos em São Paulo, em apenas dois dias de maio de 2006, jamais foram ou serão investigados, também os assassinatos em Belém permanecerão intocados assim como os seus autores.
Os 500 assassinatos em São Paulo ficaram por conta da guerra da PM com o PCC. Um levantamento superficial feito à época mostrou que a maioria das vítimas era trabalhadores, sem registros policiais.
Há uma alarido danado, nesta Casa e na Casa ao lado, contra a corrupção. Compartilho com a inquietação, mas rejeito essa visão seletiva de parte do Congresso, do Ministério Público do Judiciário e da mídia em relação à corrupção. Corrupção não é apenas desvio de dinheiro público, propinas, subornos, manipulação de licitações.
É também corrupção a indiferença do Parlamento, do Executivo, do Judiciário, do Ministério Público, da Academia, das Igrejas e da mídia diante da violência, especialmente da violência dos agentes públicos.
Da mesma forma que a impunidade no desvio de dinheiro público provocará mais corrupção, a impunidade da violência policial provocará mais violência, maior instabilidade social e perpetuação da injustiça.
Sylvia Colombo, repórter especial da Folha de S. Paulo, que se dedica especialmente a cobrir a América Latina, fez uma ligação direta entre o massacre dos estudantes em Iguala com o terrível massacre de centenas de estudantes na Cidade do México em 1968, 46 anos atrás.
O prefeito e os narcotraficantes de Iguala não queriam que os estudantes perturbassem um ato oficial; o presidente Diaz Ordáz não queria que os estudantes perturbassem as Olimpíadas, que o México sediava naquele ano. E a impunidade do massacre de 68 é a nutriz do massacre de 2014. A diferença entre uma carnificina e outra é que agora os mortos foram contados, enquanto que a sinistra contabilidade de 68 permanece até hoje inconclusa.
Quer dizer, o México, 46 anos depois de Tlatelolco estava preparado para a tragédia de Iguala. Como o Brasil, depois das chacinas da Candelária, de Vigário Geral, do Carandiru estava preparado para a chacina de Belém, para a chacina de 2006 em São Paulo e para quantas mais se sucederem nessa terrível crônica de impunidade, de indiferença e de desprezo pelos mais pobres, pelos que estão à margem.
Não se trata apenas da banalização do mal, da vulgarização da violência, de mediocrização da vida. Trata-se, isso sim, da institucionalização do mal, da institucionalização da violência e da institucionalização do desapreço à vida.
É a reinvenção continuada, inesgotável da barbárie.
O desdém em relação aos pobres, quase sempre pardos e negros, não se flagra apenas quando expedições policiais punitivas agem nas periferias das cidades, como capitães de mato na captura dos escravos fugitivos. Quase sempre, as catástrofes que vitimam os humilhados e ofendidos pela sociedade de classes pouco comovem os do topo dessa sociedade.
Senhoras e senhores senadores.
Neste 2014, registram-se os 30 anos de uma das piores tragédias do século XX no Brasil, o incêndio da Vila Socó, favela sobre palafitas na cidade de Cubatão, São Paulo.
Fazia tempo que os dutos da Petrobrás que ligavam a Refinaria Presidente Bernardes, em Cubatão, ao Terminal da Alemoa, em Santos, estavam sem manutenção e vazando gasolina no mangue em que as palafitas haviam sido erguidas.
Na noite do dia 24 de fevereiro de 1984, uma falha operacional combinada com a corrosão dos dutos provocaram o vazamento, de uma só vez, de 700 mil litros de gasolina no mangue. Alertada pelos moradores, a Refinaria informou que primeiro precisava da avaliação de um engenheiro, que morava em Santos, para acionar ou não os bombeiros. ..
Bastava uma faísca para a tragédia. Um fósforo, um isqueiro, um curto circuito. Seja o que foi, essa faísca provocou o fogo que consumiu a Vila Socó em poucos minutos.
Como sempre, quando se trata de favelados, de pardos e negros, de trabalhadores e pobres, a contabilidade das vítimas até hoje não fechou.
Assegura-se que o número de mortos ultrapassou os 700, podendo chegar a mil, mais da metade crianças; 300 crianças de zero a três anos; 245 crianças de três a seis anos. Afora uma grande quantidade de feridos.
Eram os estertores do regime militar e, embora suspensa a censura, não houve empenho para a investigação da calamidade e o balanço criterioso das vítimas.
Afinal, o Haiti é aqui e quem lá quer saber o que acontece no Haiti
Haiti, na Vila Socó, no Capão Redondo, no Guamá, na Baixada ou no Alemão?
De vez em quando alguém se interessa. Noticiam os jornais que, semana passada, a Defensoria Pública de São Paulo fez um apelo urgente às Nações Unidas para que investigue o assassinato, no dia sete de setembro, de quatro jovens, entre 16 e 21 anos, na favela São Remo, na zona oeste da capital paulista.
Eles foram inequivocamente executados pela polícia.
O caso foi entregue a um setor da ONU que investiga execuções extrajudiciais. Será que desta vez teremos alguma novidade?
Seja como for, será pouco. Sempre há de ser pouco. Mesmo porque não é a punição fortuita de membros dos sinistros esquadrões da morte que agem impunemente no Brasil que mudará a realidade dos fatos, a natureza das coisas.
E qual é a natureza das coisas no caso da violência policial, parapolicial, civil, social?
Talvez pudéssemos simplificar e, tão pura e simplesmente, endereçar tudo à conta das estruturas econômica e social e, redundantes na simplificação, dizer que nada muda se essas estruturas não forem sacudidas, demolidas, refeitas.
Talvez pudéssemos abrir aqui um parênteses e citar Marx ou Toynbee que, mesmo separados, ideologicamente, pela distância da Terra à Lua , coincidem quanto à obsolescência dos sistemas, que sinais como esses que diariamente explodem à nossa volta indicam , pressionam por um novo tempo, e que é da decadência irresistível do velho que nasce o novo.
Talvez, na mesma linha, me fosse permitido citar Guerreiro Ramos.
Talvez, para entender porque as nossas polícias executam seis pessoas por dia (bem mais, muito mais, na verdade); para saber as razões porque mais de 50 mil brasileiros são assassinados todo ano e outros 50 mil são abatidos pelos acidentes de trânsito, e mais de três mil morrem em acidentes de trabalho, talvez seja o caso, talvez fosse o caso de dar uma olhada para trás, para a nossa história e, com, ela aprender alguma coisa..
Olhar pelo retrovisor e perscrutar, examinar com atenção à busca de explicações para a nossa violência, para as nossas mãos sujas de sangue, para a nossa história empapada de sangue.
Para tentar descobrir porque somos um dos países mais sanguinários do Planeta Terra , mais até que aqueles vivem quase permanentemente em guerra.
Cite-se que a guerra da Síria, que mês que vem entra em seu quinto e sangrento ano, matou até agora, estima-se, 170 mil pessoas. Em cinco anos! Enquanto que a carnificina brasileira nas periferias pobres das cidades e do campo, nas ruas e estradas, nas fábricas e construções ceifa quase que a mesma quantidade de vidas, por ano!
Para aqueles que se chocaram, repito a pergunta: somos ou não somos um país sanguinário, violento, em guerra contra o povo?
Somos ou não somos?
País cordial? Ora bolas!
Mas, parece que isso não interessa às nossas elites. E nós somos a elite. Somos as mulheres e os homens bons. Os pais da pátria. O escol, como se dizia antigamente. E, como tais, não temos nada a aprender com a história com o passado, não temos que nos ocupar em escavar o tempo à cata das origens do mal.
Neste momento, assoberbam-nos assuntos de maior importância para que a morte violenta de mais de cem mil brasileiros anualmente interrompam as nossas atividades. Mesmo porque, esses cem mil brasileiros são quase todos pretos de tão pobres; e pobres são como pretos e todos sabem como se tratam os pretos.
Termino aqui este pronunciamento ciente que minhas palavras vão se dissolver, desmanchar-se antes que chegue ao plenário, às galerias, à tribuna de honra ou à bancada dos jornalistas.
Afinal, a oposição tem um presidente a derrubar, a situação um presidente a sustentar, os jornalistas estão excitados demais com tantas prisões e escândalos. Nessa azáfama quem lá está preocupado se neste dezembro contabilizemos cem mil brasileiros mortos violentamente?
Quase todos pretos de tão pobres, E pobres são como pretos; e todos sabem com o se tratam os pretos.
Alguém me ouvirá?
Alguém os ouvirá?