publicado originalmente em: www.cartacapital.com.br
por Rodrigo Martins — publicado 14/07/2017 00h30, última modificação 13/07/2017 11h19
O senador Requião aponta a espantosa relação de um manual da Inquisição do século XV com os métodos da Lava Jato
Da importação da Teoria do Domínio de Fato no julgamento do “mensalão” às “modernas técnicas de análise de evidência” da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, baseadas em probabilidades, hipóteses e lógica abdutiva, o senador Roberto Requião, ex-governador do Paraná, há tempos denuncia as distorções causadas pela importação de teorias do Direito, em prejuízo da presunção da inocência e do direito à ampla defesa.
Relator do projeto que atualizou a Lei de Abuso de Autoridade, ele ocupou recentemente a tribuna do Senado para tecer contundentes críticas à incorporação dessas teses exógenas pela Justiça nativa. Foi além, contudo, ao expor as espantosas semelhanças entre as práticas processuais vigentes com as instruções de um antigo manual de Direito.
O livro mencionado por Requião sugere “o confinamento do acusado na prisão por algum tempo, ou por alguns anos, caso em que, talvez, depois de padecer por um ano das misérias do cárcere, venha a confessar os crimes cometidos”.
Quanto aos relatos de testemunhas, prosseguem os autores da obra, o juiz não deve levar em consideração eventuais divergências, pois bastaria uma única convergência para considerar os depoimentos verdadeiros e idôneos. Aos defensores dos acusados, caberia atuar nos julgamentos com moderação, pois do contrário poderiam também ser considerados suspeitos e processados.
De autoria dos inquisidores dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger, o livro Malleus Maleficarum (O Martelo das Feiticeiras) foi publicado pela primeira vez em 1487, na Alemanha. Essa obra instruiu e guiou a Igreja Católica na perseguição, tortura e morte de milhares de homens e mulheres, sobretudo elas, acusados de bruxaria ou heresia. Na entrevista a seguir, o senador explica a razão de ter resgatado das prateleiras o obscuro texto com mais de 500 anos, lamentavelmente atual.
CartaCapital: O que o motivou a puxar esse debate na tribuna do Senado?
Roberto Requião: Hoje vemos o retorno de um sistema medieval de persecução, bem representado no livro Malleus Maleficarum. É a convicção que antecede a sentença. Não estou desqualificando o trabalho de combate à corrupção no Brasil, que trouxe revelações importantes à sociedade. Quando começou a Operação Lava Jato, fui um dos primeiros a saudar os investigadores, que finalmente pegaram o fio da meada.
Depois, ao ver a mobilização da opinião pública, por uma série de informações plantadas na mídia, elevadas à categoria de “convicção”, percebi que essa turma prejudicava o exercício do Direito no Brasil, além de criar corporações acima das leis, notadamente o Ministério Público e o Judiciário. Foi o que me levou a assumir a relatoria do projeto de lei sobre abuso de autoridade.
CC: O senhor critica a importação de teses estranhas ao ordenamento jurídico nacional, e aponta como marco desse movimento o julgamento do “mensalão”, no qual os ministros do Supremo Tribunal Federal usaram a Teoria do Domínio de Fato para condenar integrantes da cúpula do governo petista. Qual é o problema dessa mudança de jurisprudência?
RR: Quando o jurista alemão Claus Roxin desenvolveu essa teoria, estava preocupado com a punição de líderes e oficiais do Partido Nazista, responsáveis por graves crimes contra a humanidade. Se pensarmos na aplicação do domínio do fato para a corrupção no Brasil, devemos reconhecer que toda a cúpula política, dos partidos e dos poderes Legislativo e Executivo, está implicada.
A convicção ideológica e a seletividade dos procuradores e juízes os levaram, porém, a atribuir a responsabilidade exclusivamente ao PT num primeiro momento. Hoje, em razão da multiplicidade de atores envolvidos nas apurações, o leque de investigados se abre, tanto que bateu à porta da Presidência da República, chegou aos ministros de Temer. Isso não é, porém, obra da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba. Deve-se à atuação do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e de juízes e promotores de outras comarcas, como o Rio de Janeiro.
CC: Agora têm emergido teses baseadas em “abdução de provas”, formulação de hipóteses, inferências. O que vem a ser isso?
RR: Na prática, acredito que isso foi levado a cabo no episódio em que o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha preparou uma série de perguntas a Michel Temer, mas elas foram vetadas pelo juiz Sergio Moro. Barrou-se o envio dos questionamentos porque não interessava ao juízo, talvez contrariasse alguma tese. As perguntas dirigidas a Temer eram, porém, absolutamente pertinentes ao processo, tanto que, depois, algumas delas foram respondidas pelo delator Joesley Batista, da JBS.
CC: Como o senhor se deparou com esse manual da Inquisição e que semelhanças enxerga com a atuação da Lava Jato.
RR: Tenho uma equipe de consultores e auxiliares que têm alguma parte com a feitiçaria, cultivam a leitura e a posse desses manuais medievais (risos). Foram eles que me mostraram a obra de Kramer e Sprenger. Os procedimentos me parecem muito semelhantes. Primeiro, porque partem de uma visão ideológica, desligada da realidade, para a defesa de interesses. Segundo, por visar a eliminação dos adversários em um simulacro de Justiça. Na Idade Média, havia a tortura e a perseguição de todo mundo que não se subordinasse à Igreja Católica.
Hoje, utilizam-se as prisões cautelares para forçar confissões e delações. Além disso, no fundo da alma, esse pessoal busca a confirmação da sua verdade, influenciada pelo neoliberalismo. Boa parte dos procuradores envolvidos nessa operação tem formação em universidades dos Estados Unidos, com esse viés ideológico.
Você não vê nenhum desses juízes ou promotores, que costumam dar entrevistas quase semanalmente, se referir à entrega do petróleo brasileiro às multinacionais, ao desmonte da legislação trabalhista e da Previdência. Há um direcionamento das investigações para a proteção de interesses que não são os dos brasileiros, o que não significa que os acusados não tenham cometido crimes contra o Erário.
CC: Um trecho bastante curioso dessa obra medieval é o que recomenda o confinamento dos acusados para que venham a confessar crimes. É a mesma estratégia usada com potenciais delatores da Lava Jato?
RR: Sem dúvida. Repare a transformação do ex-deputado Rodrigo Rocha Loures. Ficou preso no Complexo da Papuda por 28 dias. Saiu da cadeia de barba e cabelo brancos, completamente desfigurado. O efeito da prisão é descrito no Malleus Maleficarum, instrumento para obter uma confissão. Lembra o que os antigos chamavam de ordálio, quando um acusado era obrigado a passar por cima de um braseiro ou atirado à fogueira. Se não queimasse, era considerado inocente.
CC: Ao relatar o projeto da Lei de Abuso de Autoridade, o senhor foi acusado por procuradores e juízes de criar obstáculos à Lava Jato.
RR: Eles fizeram uma defesa corporativa, inclusive dos erros que estavam cometendo. Chegaram ao cúmulo de colocar escutas ambientais na cela do doleiro Alberto Yossef e instalar grampos telefônicos em um escritório de advocacia. Grampeavam o investigado, a mulher, a mãe, o filho… Embora possa satisfazer muitos cidadãos inconformados com a corrupção, is
so acaba com as garantias constitucionais. Infelizmente, boa parte da população não percebe isso, foi alfabetizada com os faroestes americanos, nos quais o mocinho elimina todos os bandidos à bala, está acima da lei.
Jamais fui contra as investigações da Lava Jato. Ao contrário, quero que prossigam até o fim, mas sem seletividade, sem que sirva de instrumento para a imposição do liberalismo econômico no País. Não dá mais para ver empresas nacionais serem liquidadas e depois substituídas por companhias estrangeiras tão ou mais corruptas. Ou alguém acredita que as multinacionais são dirigidas por anjos do Nosso Senhor?
CC: Como preservar as empresas abaladas por escândalos de corrupção?
RR: Repare o que ex-presidente Barack Obama fez com a General Motors nos EUA. A empresa quebrou devido a graves problemas administrativos, mas foi assumida pelo governo e depois devolvida ao mercado. O Estado assumiu esse ônus para evitar o desemprego massivo e a desfiguração desse setor da economia. Por aqui, deixamos as empresas nacionais quebrarem. Quem paga a maior fatura não é o empresário corruptor, que passará uma temporada em seu palácio com uma tornozeleira eletrônica, e sim o trabalhador que perde o emprego.
CC: O ex-presidente Lula está tendo um julgamento justo?
RR: Não, não está. Por todo o histórico, acredito que será condenado pelo juízo de Curitiba. No entanto, em razão de recentes acontecimentos, ele deve ser absolvido por falta de provas na segunda instância ou no STF. Digo isso, apesar de ter feito oposição à política econômica de Lula e Dilma Rousseff desde o primeiro momento. Sempre considerei um erro brutal a sujeição dos governos petistas ao mercado. Ao absolver o petista João Vaccari Neto (de uma sentença de 15 anos de reclusão proferida por Moro), o Tribunal Regional Federal da 4ª Região já sinalizou que o Direito brasileiro não pode suportar uma condenação sem provas.
CC: Os indícios que pesam contra Temer são muito mais robustos e, no entanto, não vemos a mesma mobilização da opinião pública.
RR: Qual é a diferença? Temer propõe a liberalização da economia brasileira à moda de Ronald Reagan e de Margaret Thatcher. Por isso tem sido ostensivamente protegido. Também chama a atenção o comportamento do Judiciário. Agora vemos Gilmar Mendes, um ministro do Supremo, desqualificar as gravações feitas por Joesley, como se Temer fosse vítima de uma armadilha. É tudo muito estranho.
CC: De fato, nos últimos tempos multiplicaram-se os críticos da Lava Jato.
RR: É o fenômeno Savonarola. Enquanto servia à manutenção do poder da Igreja, com o seu moralismo exacerbado, o frade dominicano Girolamo Savonarola (1452-1498) levou à fogueira enorme número de cidadãos em Florença. Após desafiar o comando político local e a autoridade papal, acabou enforcado e queimado na Piazza della Signoria, o mesmo local onde cozinhava as suas vítimas.
A Lava Jato mexeu na estrutura do poder ao atingir os prepostos do neoliberalismo na política. Quando tentaram prender Aécio Neves, já surgiu um impeditivo. Enquanto os procuradores atingiam apenas o PT, tudo bem. Agora correm o risco de serem queimados. Isso não ocorrerá em frente ao Palazzo Vecchio, como aconteceu com Savonarola, mas pode ser na frente do STF.
CC: Recentemente, o senhor lançou uma frente parlamentar em defesa da soberania nacional. Qual é o objetivo?
RR: É uma frente suprapartidária, já com 201 deputados e 18 senadores, em defesa de um projeto de desenvolvimento nacional. O objetivo é resistir à ofensiva neoliberal. Estão reduzindo o Brasil ao papel de mero produtor de commodities, com o rebaixamento do padrão de vida da população, cada vez mais destituída de direitos.
Para desmontar a Consolidação das Leis do Trabalho vende-se a falácia de que a mão de obra no Brasil é cara. Como demonstrou o economista Marcio Pochmann, o trabalhador chinês custa 16% a mais. O preço do empregado brasileiro corresponde a 17% do norte-americano. Estamos na contramão do New Deal.
Nos anos 1930, seguindo o exemplo de Henry Ford, o presidente Franklin Delano Roosevelt reduziu a jornada de trabalho e elevou os salários, para reativar o mercado interno nos EUA. Aqui não. Estão destruindo o mercado doméstico, com escravização progressiva da mão de obra.