Quando assumi o Governo do Paraná pela segunda vez, em 2003, um dos grandes desafios que batia às portas do Palácio Iguaçu era a jogatina irrefreada que tomara conta do estado.
As casas de bingo, os mal disfarçados cassinos, os caça-níqueis proliferavam-se com a velocidade dos cogumelos depois da chuva.
O governo que me antecedera, de forma ilegal já que incompetente para isso, liberara o jogo. Mais que isso, o secretário de Estado que franqueara o jogo tornara-se, ele próprio, dono de casas de jogos. Como diria aquele locutor esportivo: “Que beleza!”.
Ah, sim. Um dos expoentes da jogatina no Paraná era o inefável e industrioso Carlinhos Cachoeira.
A mesma rede de corrupção, de envolvimento de pessoas gradas, graduadas e graúdas que hoje se revela na investigação em curso, verificava-se no Paraná.
Como era do dever do governador, desencadeei dura e contínua campanha contra a jogatina e seus corolários, como a lavagem de dinheiro, a corrupção, o tráfico de influência. Foi aí que o meu Governo começou a enfrentar uma sequência de liminares liberando, uma a uma, as casas de bingo que a polícia fechava. Era uma queda de braço diária. A casa de bingo que a polícia lacrava num dia, era reaberta dia seguinte, por liminar.
Na concessão dessas liminares a favor da jogatina distinguia-se um desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o desembargador Edgar Antônio Lippmann Júnior.
Mais que isso. Não satisfeito em enfrentar o Governo que combatia o jogatina, o desembargador passou a censurar minhas aparições na televisão e na rádio do Estado. Estabeleceu um rol de assuntos e de pessoas sobre os quais eu não podia falar.
Tirou-me do ar. Fixou-me pesadíssimas multas todas as vezes em que eu denunciava casos de corrupção, quando manifestava contra o assalto ao erário ou contra o bingo e seus patrocinadores.
Especialmente, não podia falar daquele ex-secretário de Estado que liberara o bingo e tornara-se dono de casas de bingo.
Se eu chamasse ladrão pelo nome, lá vinha uma punição, lá vinha a censura aos meios de comunicação do Estado.
O desembargador Lippmann estabeleceu como que um índex de temas e pessoas sobre os quais o governador era proibido falar. Se falasse, era tirado do ar e multado. Ele se transformou-se em uma espécie de herói da oposição e de boa parte da mídia, que fazia da censura e das multas a mim aplicadas manchetes diárias.
Cada liminar do desembargador reabrindo casas de bingo era comemorada pela oposição e pela grande mídia como se fosse uma derrota do governador.
Foram dias de provação. Até que uma lei federal, a par de uma decisão do Supremo Tribunal Federal, decidisse proibir o jogo do bingo, foram dias de provação para o Governo do Paraná.
Essa história, incluindo a participação nela de Carlinhos Cachoeira, contei em um livreto que lancei no mês passado, editado pela gráfica do Senado.
Hoje, volto à tribuna para acrescentar mais um capítulo à crônica do jogo ilegal e da corrupção no Paraná.
No dia 30 de julho. Acolhendo voto do relator Bruno Dantas, o Conselho Nacional de Justiça decidiu aposentar o desembargador Edgar Antônio Lippmann por venda de decisões judiciais, entre elas, a venda de liminares para a reabertura de casas de bingo, no Paraná.
Não sinto prazer em reportar à Casa a decisão do CNJ. O que me satisfaz é ver o Conselho honrando suas atribuições de fiscal do Judiciário.
As investigações do CNJ sobre a venda de decisões judiciais pelo desembargador começam ainda em 2003, ano em que ele movia uma guerra toda particular contra mim.
Em 2009, diante de provas robustas, o Conselho suspende preventivamente o desembargador. Chamado a depor e se defender, em nenhum momento ele convence o CNJ de que não praticara os crimes de que era acusado.
O conselheiro Bruno Dantes fala em (..) “Provas inequívocas de venda de decisões judiciais para viabilizar a reabertura e funcionamento de casa de bingo” (..). Dantas cita especificamente a liminar concedida a uma casa de bingo de Curitiba, chamada Monte Carlo, vejam só a coincidência.
Afirma Dantas em seu voto: (…) “tornou possível comprovar as frenéticas transações financeiras e imobiliárias realizadas durante o período em que o requerido atuou como relator do agravo de instrumento interposto pelo Bingo Monte Carlo “.
Bruno Dantas observa que embora os depoimentos colhidos na investigação fossem “consistentes e coerentes”, não passaram de “mero ponto de partida”, já que “vasto acervo documental demonstrou indubitavelmente” que o desembargador se utilizou da ex-mulher e até mesmo dos filhos como “laranjas”, “para ocultar os bens adquiridos a partir de sua atividade ilícita”.
Sobre as transições imobiliárias e a movimentação financeira de Lippmann diz ainda o conselheiro:
-Num esforço vão de ludibriar a fiscalização que a Receita Federal promove com base nas Declarações de Renda de Pessoa Física, o requerido realizou séries de transações imobiliárias dentro do ano-calendário 2004, esvaziando artificialmente o seu patrimônio pessoal e inflando o patrimônio de seus familiares, que não possuíam qualquer renda ou lastro financeiro capaz de justificar referidas transações”.
Na sequência dessa afirmação, o conselheiro arrola os tantos terrenos, casas, apartamentos e conjuntos comerciais adquiridos pelo desembargador e registrados em nome da ex-mulher e dos filhos.
Observa Dantas: “Os relatórios da Receita Federal de movimentação financeira (CPMF) chamaram a atenção para a incompatibilidade entre os rendimentos oficiais auferidos pelo requerido e o fluxo de recursos que transitaram por suas contas, principalmente no ano de 2004”.
E continua o conselheiro do CNJ:
-Vale dizer, entre os anos de 2000 e 2004, os rendimentos brutos do requerido sofreram variação positiva de aproximadamente dez por cento.
No mesmo período, sua movimentação financeira global variou aproximadamente astronômicos dois mil por cento (…)”.
O relator afirma também que Lippmann despendeu “ grande esforço para tentar, sem sucesso, colocar em dúvida a afirmativa dos órgãos de fiscalização de que sua movimentação financeira e sua evolução patrimonial apresentariam indícios de incompatibilidade com seus rendimentos oficiais”.
Bruno Dantas relata ainda que o desembargador pediu provas periciais, para demonstrar que o aumento vertiginoso de sua movimentação financeira se dera por causa de empréstimos que fizera.
A alegação é fulminada por Dantas, que afirma: “No mesmo período em que, segundo alega, era um homem endividado, que necessitava recorrer à ajuda de amigos, parentas e instituições bancárias, adquiriu para si, para sua companheira, ou para os seus filhos, um expressivo patrimônio (…)”.
Reforça o conselheiro-relator:
-O exame cuidadoso dessas transações imobiliárias não deixa qualquer dúvida de que, longe de ser um homem endividado, o requerido se valia de empre´stimos bancários para obscurecer o elevado fluxo de dinheiro e o grande patrimônio que construía em nome de “laranjas”, mercê da evidente incompatibilidade co m sua renda oficial”.
Arremata Bruno Dantas: “A meu juízo, o que foi narrado até aqui já bastaria para aplicar a mais severa sanção do estatuto disciplinar da magistratura ao requerido”. Mas, adverte o relator, “os autos contém mais”.
E o “mais” a que se refere o relator são os valores semanais que o desembargador recebia como propina dos donos do jogo. Como detalha Dantas, “ o acerto não consistia exclusivamente no pagamento da propina em parcela única”. Havia “ um montante variável”, pago semanalmente ao desembargador como remuneração para manter o bingo aberto. Neste caso, o Bingo Monte Carlo.
Afirma o relator: “Vale dizer, o requerido se tornou uma espécie de “sócio” do Bingo Monte Carlo, e a sua tarefa no negócio consistia em prolongar, pelo máximo tempo possível, a vigência da liminar que concedera para autorizar o funcionamento da casa”.
Prossegue Dantas em seu voto: “À medida em que os dias passavam e a liminar se mantinha e o bingo funcionava, acumulavam-se depósitos na conta-corrente (….) do requerido (…)”. Assim, foram identificados dezenas de depósitos online, em dinheiro, na conta do desembargador. Todos inferiores aos limites estabelecidos pelo COAF para identificar transações suspeitas.
Para exemplificar, Dantas relaciona dezenas de depósitos, de valores variados, feitos na conta do desembargador entre novembro de 2003 e novembro de 2004, justamente o período mais quente, mais acesso da minha guerra contra a jogatina no Paraná. Justamente o período em que o desembargador me cumulou de censuras, multas e ofensas, para o deleite de meus adversários e de parte da imprensa, paranaense e nacional.
Esses depósitos continuaram para além de 2004, observa Bruno Dantas, suspeitando que o desembargador utilizasse o mesmo método para receber outros pagamentos ilícitos de vendas de outras sentenças. E o conselheiro-relator chama a atenção para o fato de que “esses depósitos frequentes vêm a cessar coincidentemente em 2008, justamente quando se torna pública a notícia de que o requerido supostamente integrava a máfia de venda de decisões judiciais”.
Depois de esmiuçar cada ponto dos malfeitos do desembargador Lippmann, o conselheiro-relator Bruno Dantas pondera:
-A conduta de um magistrado deve servir de exemplo para todos, não só na forma como decide os conflitos que lhe são submetidos, mas também em sua vida privada. Para fazer justiça, o juiz precisa antes ser justo, probo e íntegro, do contrário, as decisões que profere estarão sempre sob suspeita (…). Um juiz venal não só compromete a aplicação da justiça e a segurança jurídica, nas prejudica a imagem de todo o Poder Judiciário, desacredita o povo , estimula a vingança privada e, em última análise, conspira contra o Estado Democrático de Direito, à medida que abala a respeitabilidade das instituições públicas”.
Conclui o conselheiro:
– Resta sobejamente demonstrado, portanto, que o desembargador Edgard Antônio Lippmannn Júnior, utilizando-se da sua elevada condição funcional, praticou atos em desacordo com o Código de Ética da Magistratura Nacional e incompatíveis com a moralidade, a honra e o decoro inerentes ao exercício da magistratura (…) “.
Assim encerra-se a carreira do desembargador Lippmann na Judiciário brasileiro. As mulheres e homens honrados do Paraná que se revoltaram e se escandalizaram com suas decisões certamente sentem-se aliviados. E aqueles que comemoravam cada uma de suas decisões corrompidas, compradas com depósitos à vista e cotas semanais, devem se envergonhar pelos elogios, pelas manchetes, pelos editoriais, pelos generosos espaços a ele concedidos na mídia e pelos inflamados discursos nos legislativos municipais, estadual e federal.
Senhoras e senhores senadores.
Como disse, não sinto qualquer prazer neste relato, embora alvo preferencial do desembargador em suas decisões discricionárias, decisões sustentadas pelos trinta dinheiros da traição à Justiça.
Ao conselheiro Bruno Dantas e ao Conselho Nacional de Justiça não apenas os cumprimentos mas também os agradecimentos por nos fazer acreditar que este país tem jeito.
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