Na reunião ordinária da Assembleia Parlamentar Euro-Latino-americana, Eurolat, que se realiza em Florença, Itália, nesta semana, o senador Roberto Requião analisou as relações do nosso continente com a Europa e afirmou que as políticas neoliberais de austeridade não vão tirar nenhum país da crise.
A Eurolat reúne os parlamentos latino-americanos e do Caribe com o Parlamento Europeu e o senador Requião coo preside a entidade.
Conheça a seguir o pronunciamento do senador:
Confesso-me um europeísta militante. Desde os meus primeiros anos de juventude, frequento o Velho Continente, seus países, suas cidades, suas manifestações culturais, seus costumes, sua história e sua política.
Hoje, com 76 anos, sou da geração de brasileiros, por extensão latino-americanos, profundamente ligada à Europa.
A Europa era a nossa referência, não os Estados Unidos ou a Ásia. As ditaduras que desgraçaram a América Latina, nas décadas de 50, 60, 70 e 80, ajudaram a firmar ainda mais essa ligação, já que os norte-americanos foram não só os avalistas das ditaduras como também os seus promotores.
Naqueles tempos tenebrosos, parodiávamos Porfírio Diaz: “Pobre América Latina. Tão longe de Deus e tão próxima dos Estados Unidos”.
Assim, por quase cinco décadas, era da Europa que recebíamos a solidariedade e o apoio na luta contra o arbítrio. A Europa era o nosso espaço de exílio, o nosso refúgio, o nosso amparo.
Por séculos, acompanhamos as iniciativas europeias nos campos cultural, jurídico, político e econômico. Nossos principais formuladores de políticas econômicas, notadamente Raúl Prebish e Celso Furtado, foram originais adaptadores de teorias econômicas desenvolvidas na Europa e moldadas à nossa realidade.
Com isso, tivemos ciclos impressionantes de crescimento econômico e conseguimos avançar na caminhada do desenvolvimento.
É só muito recentemente, coisa de 20, 30 anos, que os Estados Unidos passaram a ter a proeminência cultural e política que hoje exercem sobre a América Latina, especialmente sobre a nossa juventude.
Mesmo porque, à invasão norte-americana corresponde o refluxo político, econômico e mesmo cultural da Europa.
Foi nesse período que a Europa deixou de ser a nossa referência, ao aderir à globalização neoliberal, à financeirização da economia, à destruição do Estado Social.
O nosso luzeiro ensombreceu-se.
Quando as reformas neoliberais começaram a destruir os pouquíssimos avanços que, ao longo dos séculos, aconteceram em nossos países, não tínhamos mais a Europa como referência, como inspiração ou respaldo.
Pior ainda: à medida que a Europa abandonava o caminho da distribuição da renda, da garantia dos direitos trabalhistas e sociais, da proteção social, da harmonia social, reproduziam-se nos trópicos, multiplicados por mil, os mesmos recuos.
A velha Albion, vanguarda nos avanços sociais-democratas, confirmava-se como a pérfida Albion ao liderar a destruição daqueles avanços civilizatórios.
A Europa iluminista, a Europa revolucionária, a Europa vanguarda na instituição dos direitos sociais, humanos e trabalhistas frustra-nos.
A globalização, que poderia ter sido um momento único, fantástico da história da humanidade, conectando e irmanando o planeta pela solidariedade, pela fraternidade e pela prosperidade, ressuscita, com a contribuição essencial da Europa, os tempos mais sombrios e repulsivos do colonialismo e das ameaças fascistas.
Ironicamente, foi a Europa que apontou para uma globalização inteiramente diferente da globalização assimétrica e financeirizada que acabou predominando.
Com efeito, a construção histórica da União Europeia deu-se sob o signo inicial da solidariedade e da integração não apenas dos mercados, mas das culturas e das pessoas.
O princípio da solidariedade, que está inscrito no art. 4º, n.3 do Tratado da União Europeia, engloba uma concepção comunitária das relações entre os Estados e entre eles e os indivíduos. Por isso, a União Europeia assumiu como tarefa essencial, além da criação de um poder integrado entre os Estados, a geração de um direito comunitário.
Direito esse que assegurasse e promovesse a integração das pessoas e dos povos numa cidadania comum, plena de garantias.
Esse tipo de integração apontava, de fato, para uma espécie de “globalização social”, centrada nos interesses da cidadania, em contraponto à globalização neoliberal, centrada apenas nos interesses do capital desregulado.
No NAFTA, a integração baseada em interesses comerciais e financeiros do grande capital ergueu um gigantesco e vergonhoso muro de segregação, que agora Trump quer ampliar. Na União Europeia, o Tratado de Schengen abriu as fronteiras dos Estados Nacionais para todos os cidadãos europeus.
Por um breve e iluminado momento, a Europa descortinou um novo caminho, um novo renascimento fundado na globalização da solidariedade, da fraternidade e da prosperidade.
Mas, em vez de um novo renascimento, de um novo movimento iluminista, de uma nova era revolucionária, o que nos deu a Europa? E, agora, o que nos oferece a Europa?
Desculpem-me a franqueza, mas boa parte do pior que acontece atualmente no mundo, em matéria econômica, tem origem na Europa e na sua institucionalidade fiscal-monetária.
A Europa está traindo os princípios fundadores da União Europeia e erguendo muros entre países ricos e pobres e entre cidadãos ricos e pobres. Muros de austeridade que separam os cidadãos europeus do pleno usufruto de seus direitos. Muros que destroem a prosperidade e a solidariedade. Muros que lançam sombras nos ideais do Iluminismo.
O enfraquecimento econômico da maioria dos países europeus, à falta de políticas explícitas de recuperação da demanda, compromete o investimento e o emprego, refletindo no mercado mundial.
O que deveriam ser políticas coordenadas de retomada se tornaram, com o nome de austeridade, políticas de contração.
Creio que todos nos lembramos de quando a Rainha Elizabeth, da Inglaterra, em face da eclosão da crise em 2008, revelando o senso comum dos mortais, mostrou seu espanto com o fato de que algo de tamanha dimensão e de tamanha gravidade para o mundo não tinha sido previsto pelos economistas.
É claro que tinha sido previsto, sim, por alguns economistas, mas não por um número significativo que pudesse sensibilizar a grande mídia mundial obcecada pelas promessas da globalização financeira e do neoliberalismo então triunfantes em todo o ocidente.
No entanto, mais impressionante que uma terrível crise que não foi prevista é uma crise que, passados mais de oito anos de seu início, está longe de ser debelada pelos instrumentos usados até aqui.
Onde estão os grandes formuladores de políticas econômicas e de relações internacionais da Europa?
O que fazem os arautos das grandes universidades europeias?
O que fazem os políticos? Desistiram de pensar uma solução, ou as forças que impedem a solução são tão formidáveis que sacrificam o destino do mundo aos interesses da banca?
O que seriam políticas de austeridade, essa palavra mágica usada para mascarar o estrangulamento financeiro dos países vítimas, tão ao gosto do mercado?
Não vou responder, não sou um expert. Vou passar a palavra a três especialistas europeus do Centro Europeu de Pesquisa Política, Christian House, Christian Proebsting e Linda Tesar, que apresentaram um ensaio, resumido em Vox Eu, que dá resposta definitiva ao questionamento sobre a eficácia dos programas de austeridade. Eis o resumo inicial:
“ As políticas de austeridade implementadas durante a Grande Recessão têm sido culpadas pela recuperação lenta em diversos países europeus. Utilizando dados de 29 economias avançadas, esse artigo mostra que as políticas de austeridade afetam a performance econômica dos países negativamente, reduzindo o PIB, a inflação, o consumo e o investimento.
Ainda mostramos que esforços de redução de dívida através de políticas de austeridade em momentos de recessão econômica se mostram contraproducentes”.
Não cabe aqui descer a detalhes do estudo.
O fato é que argumentos relevantes, fundamentados e irrespondíveis, baseados em rigorosos testes econométricos, indicam que os objetivos das políticas de austeridade no sentido de reduzir a relação dívida/PIB fracassaram redondamente.
Previa-se, para os casos de Grécia, Irlanda, Itália, Portugal e Espanha, que a austeridade resultasse em queda da relação dívida/PIB de 20%.
Na realidade, aumentou em 20%.
Para esses e outros países da União Europeia e da área do euro, verificou-se que:
.Redução em contas governamentais reduz o PIB
.Redução no PIB leva à redução em receita fiscal (ambos esses efeitos levam a um aumento na relação dívida/PIB).
E parte da austeridade fiscal transborda em outros países.
É impressionante o fato de que essas conclusões, a rigor, não dependem de muitos estudos acadêmicos.
A Europa deu ao mundo, oito décadas atrás, diante da Grande Depressão, o keynesianismo.
E era de se esperar que as teorias do maior economista do século XX servissem como farol das políticas econômicas contra a recessão e a depressão, a exemplo do que ocorreu no New Deal norte-americano e no Novo Plano alemão de Jalmar Schacht, nos anos 30.
Contrariamente a isso, os Estados Unidos foram, pelo menos em parte, os únicos dos grandes países a aplicarem o keynesianismo frente à crise atual.
A impressão que se dá é que os políticos norte-americanos, ao contrário da maioria dos europeus e também dos latino-americanos levam mais a sério os riscos do desemprego e da depressão.
Contra a paranoia da austeridade monetária e fiscal, o Governo Obama implementou déficits fiscais sucessivos de 1,4 trilhão de dólares em 2009; 1,3 trilhão em 2010; 1,2 trilhão em 2011; 1,2 trilhão em 2012 e 1trilhão em 2013. Só a partir de 2014, com a taxa de desemprego já tendo sido reduzida a níveis razoáveis, os déficits baixaram do patamar de 1 trilhão de dólares.
Se não empreender uma política fiscal-monetária expansiva, a exemplo do que está fazendo com grande sucesso o pequeno Portugal, a Europa dificilmente se recuperará da recessão e, portanto, não terá um papel efetivo de locomotiva da economia mundial.
A própria China acabará sendo afetada pela redução das importações europeias. A América Latina, já em crise, será brutalmente atingida.
Entretanto, nenhuma recuperação será possível se for construída sob os ditames da globalização financeira, sob domínio de Mamon, o deus-dinheiro amaldiçoado pelo Papa Francisco.
É necessário que nós, desta Assembleia, assumamos nossa responsabilidade no esforço de recuperação das duas economias regionais e, em última instância, mundial.
Sei que há questões técnicas complexas envolvidas, o que nos impõe a mobilização de quadros competentes, que possam trabalhar fora do marco institucional convencional, diretamente sob a nossa autoridade política. Do contrário, a crise se aprofundará, o desemprego atingirá níveis alarmantes, o PIB continuará em recessão, e explodirão os conflitos sociais.
Da América Latina se pode dizer, a respeito das políticas econômicas de globalização financeira e de neoliberalismo radical adotadas na Europa, que “de te fabula narratur”.
No Brasil, tivemos um breve momento de política econômica extremamente bem-sucedido, em 2009 e 2010, quando adotamos vigorosas políticas de estímulo da demanda e do investimento.
O resultado foi um espantoso crescimento de 7,5% em 2010 e pleno emprego, em plena crise mundial. Recuamos depois, infelizmente, por efeito, sobretudo, de uma batalha ideológica dentro e fora do Governo, que perdemos.
Perdoem-me a ênfase na crise econômica em um momento em que a Europa se defronta com outros problemas relevantes, como imigração e terrorismo.
Estes felizmente não afetam, ainda, a América Latina.
Mas, nenhum de nós, em sã consciência, discordará de que a crise econômica é estruturante das demais mazelas sociais, inclusive as da imigração e do terrorismo.
Nenhum de nós discordará também que a crise econômica e o grande crescimento da desigualdade estão no centro da perigosa crise das nossas democracias e dos nossos sistemas de representação política, que lembra a tragédia histórica que a Europa viveu nas décadas de 20 e 30 do século passado.
Nesse caso, creio que, não podendo dividir as causas do problema com os europeus, devemos, por dever de humanidade, ou de compaixão, ajudar numa solução justa para o problema.
O fato é que a solução humanitária deve vir junto com a solução para a crise econômica em termos de promoção do desenvolvimento global.
Uma vez que o neoliberalismo, o individualismo exacerbado, a financeirização absoluta, o reinado de Mamon são incompatíveis com a compaixão e com a vida.
São incompatíveis com os princípios e os valores que criaram a UE e que animam a integração latino-americana.
Senhoras e senhores parlamentares. Não há outra saída. Latino-americanos e europeus estamos destinados, somos forçados a buscar alternativas de forma associada, de comum acordo.
Antes que o retrocesso conservador, que fere de morte os direitos de nossos trabalhadores, restabeleça a noite da infâmia sobre o continente latino-americano.
Antes que a ganância e a impiedade facínora de nossas classes dominantes fechem todos os espaços para a razoabilidade e a concórdia, despertando, mais uma vez, o desespero e a insensatez dos Netchaiev.
Antes que as sementes da ira germinem e espoquem em conflitos civis, este plenário, que reúne o Velho e o Novo Mundo, precisa ter a iniciativa e a coragem de apresentar alternativas.
A política de austeridade faliu. A financeirização da economia desgraça a humanidade. O predomínio do capitalismo financeiro sobre a produção, o trabalho, os direitos trabalhistas, a seguridade social e a ventura de vida dos habitantes deste planeta precisa ser detido, já!
Diante desta óbvia constatação, qual seja a nossa afiliação em tendências, vamos à busca de um novo caminho.
Ou melhor, retomemos o velho caminho da solidariedade, da paz, da justiça, da distribuição de rendas, do respeito aos mais velhos e aos desvalidos, da proteção da infância, da preservação do meio ambiente e da responsabilidade ativa para com o Planeta Terra.
O contrário disso é o caos, é a barbárie.
Qual a nossa escolha?