Para se opor ao Consenso de Washington e ao seu decálogo de recomendações que favorecessem, sem qualquer restrição, aos interesses do mercado, um grupo de economistas brasileiros, reunidos pelo Instituto de Estudos Estratégicos para a Integração da América do Sul, o Intersul, está propondo o Consenso do Rio, um brado de independência em relação às políticas macroeconômicas que há mais de duas décadas desgraçam nações e povos em todo o mundo. Talvez agora, quando a ressaca atinge com força países da Europa ocidental, talvez agora seja possível que se preste mais atenção àqueles que clamam há tempo contra a estupidez do neoliberalismo. Assinado, entre outros, por Maria da Conceição Tavares, Luiz Gonzaga Belluzzo, Carlos Lessa, Luiz Carlos Bresser Pereira, Theotônio dos Santos, Denise Gentil, Luiz Pinguelli Rosa, Luiz Nassif, José Carlos de Assis, Roberto Saturnino Braga, Ricardo Carneiro, Miguel Bruno, o Consenso do Rio busca identificar “as principais características de uma política macroeconômica estimuladora do desenvolvimento dos países da América do Sul, conciliando estabilidade de preços, crescimento e promoção do pleno emprego”. A política, diz o documento, deverá assegurar também “estabilidade externa, eliminação da miséria e redução dos índices de concentração de renda e de riqueza, com o aumento do bem estar das populações”. O texto parte da premissa de que três décadas “de conformação das políticas macroeconômicas dos países sul-americanos ao neoliberalismo deixaram pouca margem de manobra aos governos regionais para buscar alternativas desenvolvimentistas. O padrão comum, com raras exceções, foi o de promover o Estado mínimo através das privatizações, restringir o endividamento e o investimento público e favorecer a suposta auto-regulação da economia dentro dos cânones da ortodoxia fiscal e monetária”. No entanto, os acontecimentos recentes mostraram, mais uma vez, o fracasso dessa política, “que resultou em crise nas próprias economias avançadas e em crescimento lento e instável nas regiões subdesenvolvidas e em muitos países em desenvolvimento, com altos custos sociais, dos quais apenas têm escapado países emergentes que se distanciam do padrão neoliberal”. Enfim, as recomendações do FMI, do Banco Mundial, do Departamento de Tesouro dos Estados Unidos, enfeixadas no Consenso de Washington trouxeram para os países sul-americanos resultados econômicos pífios e agravamento dos já crônicos, seculares problemas sociais. Logo, chegou a hora de se ter coragem de enterrar o falecido, cujo espectro agora assombra a Europa. Argumentam os redatores do Consenso do Rio: -O quadro internacional mudou radicalmente, e é por isso que se justifica esta proposta de uma nova política macroeconômica para a região. De fato, todo o mundo industrializado avançado está em crise financeira, fiscal e de demanda interna, submetendo-se à medicina do ajuste fiscal que classicamente recomendava aos países em desenvolvimento. Ajuste fiscal significa reduzir gasto público, salários e benefícios sociais para comprimir o mercado doméstico e gerar excedentes exportáveis. Numa situação em que todos os países ricos querem exportar mais e importar menos, é duvidoso que tais políticas tenham resultados positivos. Contudo, o fluxo das exportações dos ricos tende a buscar os países emergentes e em desenvolvimento, com o risco de um dumping industrial mundial que lhe venha destruir seu parque produtivo industrial. Países que têm uma base industrial estarão ameaçados, e países que não têm, mas aspiram a tê-la, estão igualmente em risco. Diante disso, no caso da América do Sul, é imperioso acelerar o processo de integração, pois dentro de um bloco econômico será possível proteger os mercados internos sul-americanos, sem ferir as regras da Organização Mundial do Comércio. Individualmente, qualquer país que recorra a barreiras comerciais corre o risco de discriminação e retaliações no mercado internacional. Num bloco, ele pode fazê-lo sem ferir tratados internacionais”. Agora, vamos às propostas do Consenso do Rio, às idéias de uma “estratégia de estímulo ao desenvolvimento econômico e social compatível com as necessidades sociais e o equilíbrio político dos países da América do Sul”. 1. Retomada do princípio do planejamento público como instrumento estratégico para alcançar os objetivos nacionais de desenvolvimento econômico, eliminação da miséria, redução das disparidades regionais e da extrema concentração renda, mediante a busca de um sistema tributário justo e progressivo que aponte na direção do Estado do bem-estar social; 2. Política monetária que comporte a expansão da moeda de acordo com as necessidades do crescimento econômico com estabilidade monetária e tendo por objetivo último a máxima geração de emprego; 3. Atribuição ao Banco Central desse tríplice objetivo, para cuja execução ele terá liberdade operacional, sujeita a verificação de eficácia pelas comissões de economia e finanças do Congresso Nacional; 4. Controle fino da liquidez mediante a defesa pelo Banco Central, no open, da taxa de juros fixada conforme os objetivos dos itens 1 e 2 ; a taxa básica de juros deve condicionar também o processo de internação ou retenção externa do fluxo de reservas, para compatibilizar esse fluxo com o nível de liquidez desejado; 5. Política cambial no regime semi-flutuante, entendido como a administração do câmbio mediante utilização das reservas internacionais para manter o valor externo da moeda numa faixa que promova a competitividade externa, sobretudo a baseada em bens de maior valor adicionado, assim como o crescimento interno; 6. Política fiscal anti-cíclica e pró-investimento do Estado para corrigir deficiências de infra-estrutura, admitindo-se, em situação de alto desemprego e alto índice de ociosidade no parque produtivo, aumento da relação dívida/PIB (como ocorreu sabiamente no Brasil com os investimentos de Petrobrás, Eletrobrás e BNDES financiados pelo Tesouro em 2009 e 2010); note-se que não existe razão teórica ou empírica para eliminar a dívida pública como fonte de financiamento do Estado, a não ser em condição de esgotamento da capacidade ociosa na economia; da mesma forma, trata-se de um viés ideológico inaceitável para países em desenvolvimento limitar a relação dívida/PIB a valores arbitrários, como aconteceu na Europa do euro sob o Tratado de Maastricht, hoje claudicante. A questão verdadeiramente relevante é a gestão de um endividamento público com caráter produtivo, isto é, a dívida pública deve ser utilizada, prioritariamente, para o financiamento do investimento público com potencial de aumentar a produtividade da economia. Macrodinamicamente, como o investimento público em infraestrutura eleva a taxa de investimento privado (efeito crowding in no médio e longo prazos), a base tributária se expande e a própria dívida pública tende a reduzir-se ou estabilizar-se. Atualmente, não é isso o que ocorre; o endividamento público nos países avançados e em desenvolvimento converteu-se no eixo da acumulação rentista, através de estruturas de revalorização da riqueza pouco ou nada conectadas às necessidades das atividades diretamente produtivas. Nesse contexto, não é surpresa que as finanças públicas encontrem-se subordinadas às finanças privadas, de acordo com as demandas dos detentores de capital e de grandes bancos e investidores internacionais. 7. Promoção do investimento de integração econômica, estruturando um novo modelo de desenvolvimento econômico e social ancorado na nova política macroeconômica aqui sugerida, nos termos propostos em projeto de lei , já em tramitação no Senado brasileiro, e em discussão em entidades da sociedade civil de outros países da América do Sul; 8. Aperfeiçoamento e expansão do uso do CCR (Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos) nas transações comerciais e de investimento na América do Sul; 9. Estruturação do sistema de financiamento de investimentos públicos e privados na América do Sul em torno do Banco do Sul, da CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina), do BNDES e de outros bancos públicos regionais, mediante um mecanismo próprio de avaliação de risco que desconsidere as agências externas de classificação, e que funcione como um selo de qualidade para investidores fora da região”. Senhoras e senhores senadores. Esta é a proposta do Consenso do Rio. Antigas e boas idéias que o tropel neoliberal varreu das academias, dos palácios governamentais, dos parlamentos, da imprensa. Não acredito que deva existir nesta Casa debate mais importante, imperioso, urgente que este. Mesmo porque, como aponta a proposta do Consenso do Rio, a crise na Europa e nos Estados Unidos revela “uma evidente ressurgência neoliberal”, com a imposição do mesmo receituário já desmoralizado em cada parte do planeta. Nas considerações finais, afirma o texto do Consenso do Rio: Nosso intuito é, pois, oferecer aos formuladores de política econômica da América do Sul uma contribuição no campo das idéias para o estabelecimento de uma nova estratégia econômica para o continente. Ao mesmo tempo, estamos oferecendo às sociedades de região um conjunto de princípios que eventualmente sirva para alimentar o debate em torno de nossa situação presente e de nosso destino. Não podemos assistir passivamente a um processo que pode nos arrastar para o mesmo abismo em direção ao qual forças retrógradas estão empurrando vários países europeus. Sem uma estratégia clara de ação, estaremos condenados ao retrocesso econômico, social e político. Naturalmente, mesmo enquanto região, não estamos isolados em relação ao que acontece no resto do mundo, em especial nos países industrializados avançados. Embora não possamos influir diretamente nas políticas ali praticadas, podemos chamar a atenção das respectivas sociedades para suas contradições e incongruências que põem em risco a nossa própria estabilidade. Entre os países ricos, os Estados Unidos enfrentam um problema, sobretudo, de dívida privada, remanescente do colapso do mercado imobiliário. Como emissores da moeda mundial, seu problema de dívida pública é de ordem sobretudo ideológica; são, pois, razões políticas que impedem os Estados Unidos de agirem decididamente por sua recuperação e a recuperação mundial. Já na Europa do euro, onde quebraram vários Estados para que fossem salvos os bancos, a dívida pública tornou-se um foco permanente de especulação. Em ambos os casos, políticas fiscais restritivas são ineficazes para o relançamento das economias. Assim, nos parece inevitável alguma forma de socialização dos bancos como preliminar da reestruturação das dívidas com alguma perda por parte dos investidores, para possibilitar a retomada do desenvolvimento econômico e social sustentável em escala planetária. Senhoras e senhores senadores. Este é o caminho. Não há alternativas para fugir das garras gananciosas e perniciosas do mercado que não apoiarmos em nossas próprias forças e uni-las às forças de outros países sul- americanos. Do contrário, é entregar o país à condução de um executivo do Goldman Sachs, como está fazendo a Itália, ou ser humilhado como a Grécia, o berço da democracia, do governo do povo, que foi proibida pelos credores de consultar o seu povo, para saber se ele concordava ou não com os cortes na previdência, na saúde, na educação, na moradia, com a redução de empregos e de salários. Ou ajoelhar-se como os portugueses e os espanhóis estão fazendo. O que somos, um país ou um mercado? Qual a resposta do Senado?