Como dizia a minha avó Giovanna Catarina, com fogo no rabo até preguiça corre. Talvez, hoje, o dito não soe lá “politicamente correto” para a comunidade dos defensores do bradypus variegatus, mas ele é adequado ao momento, quando o lentíssimo metabolismo de nossos poderes desperta-se e acelera-se com o fogo das ruas.
É o que sempre acontece, quando as instituições esplendidamente adormecidas, emersas no torpor da desídia e da indiferença, de repente são sacudidas pelo brado do povo.
Mas…mas… assim que acordados, tendemos reagir com “legislações de pânico”, com medidas emergenciais, tipicamente de oportunidade, apressadamente desengavetadas ou criadas para aplacar a ira e a insatisfação dos manifestantes. É histórico. Até mesmo Luís XVI, antes de ser guilhotinado tentou, em vão, fazer girar a roda dos acontecimentos para trás, com medidas supostamente de gosto dos franceses rebelados.
Multiplicam-se ao infinito os exemplos de marmeladas que, administradas na hora da morte, mataram.
Ainda assim, as medidas aprovadas por esta Casa e pela Câmara dos Deputados, nesses dias, todas louváveis, não tocaram na alma, no espírito das manifestações e nem tangeram o coração dos protestantes. Que as senhoras e senhores senadores me desculpem, mas que medida, das que tomamos e das anunciadas para as próximas semanas ou meses, que medidas, que iniciativas são substantivas, significantes, transformadoras?
A velhíssima tática lampedusiana ou carlista, do Antônio Carlos mineiro e não o baiano, de arremedar a revolução antes que seja realmente feita, nem sempre é eficaz. Haverá uma hora em que o lobo surgirá e nessa hora não adianta gritar como o Pedro da fábula.
A reforma política, por exemplo, eterno tema, sempre de coringa para toda crise, não é, pelo que entendo, a geratriz dessas mudanças e transformações substantivas, significantes. Ainda mais que todos os ensaios de reforma política, nessas últimas décadas, e os ensaios recentes aqui no Senado, revelaram-se reformas eleitorais e não políticas.
Dá para caracterizar como reforma política proibir que o prefeito mude de domicílio eleitoral durante o mandato? Ou fixar para outra data que não o dia primeiro de janeiro a posse dos eleitos? Ou determinar cotas para a candidatura feminina?
É reforma política estabelecer novas regras para a suplência dos senadores? Criar a figura das “candidaturas avulsas”? Limitar os gastos das campanhas eleitorais?
Não me parece que isso seja reforma política, que esses sejam os elementos essenciais, os pilares fundadores de uma reforma política.
Quer dizer, além de não ser a mãe de todas as reformas, a reforma política não vai além de um conjunto de regras eleitorais que não mudam a essência de se fazer política no país. As ruas querem um pouco mais que regras eleitorais, caso eu tenha ouvido com clareza os gritos dos manifestantes.
A origem do desencanto nacional com os políticos e com os partidos não é a quantidade siglas existente, a fidelidade ou infidelidade partidária, o voto proporcional ou majoritário, a quantidade de mulheres candidatas.
Eis, então, que registro a primeira discordância desse alistamento quase unânime na frente pela reforma política, mesmo porque a crise econômica aperta; piscam todos os sinais de alerta e nós aqui no recreio, na distração da reforma política….. quer dizer, eleitoral.
A segunda discordância é quanto à palavra reforma. Reformar é pouco, é quase nada.
Esse país há 500 anos desigual, injusto, cruel para com o seu povo, impiedoso com os mais pobres, mesquinho, avarento na provisão dos direitos à educação, à saúde, ao transporte minimamente de qualidade, à terra, à casa, à segurança, esse país não precisa de reformas, de remendos, de quebra-galhos, de emplastos e cataplasmas.
Esse país precisa de revolução. E a primeira etapa desse processo revolucionário, é a radicalização da democracia.
O desenvolvimento político, social e econômico do Brasil exige a radicalização da democracia. E não esses arremedos de mudanças que acenam e com que tentam distrair o país. Radicalizar a democracia ou que tudo fica como está.
Como diz o economista José Carlos de Assis, que me inspira esta fala,mais uma vez o Brasil está sendo seqüestrado pelas preocupações e pelas iniciativas de curto prazo. Perdemos, ou talvez nunca tivemos, nas últimas décadas, a vontade coletiva orientada por uma liderança responsável, capaz de definir um novo horizonte para o desenvolvimento sócio-econômico do país.
Isso se dá não apenas na área econômica, mas também nos campos social e político. Em economia, não há uma perspectiva de futuro que vá além de um ajustamento ao neoliberalismo, não obstante o fracasso absoluto dessa doutrina de livre-cambismo e de Estado mínimo.
No campo político temos avançado pouco. Há um enorme espaço de aperfeiçoamento institucional que permite ampliar as conquistas da cidadania brasileira. E isso não se faz com reforma eleitoral. Já no campo social, onde mais avançamos, perdemos alguns elementos importantes introduzidos pela Constituição Cidadã de 88 e, em alguns aspectos, regredimos.
Entendo que, para superar esse estado de anemia profunda em nossa sociedade e em nosso sistema político, temos que buscar a reconstituição de um pacto social que estruture uma sociedade orientada efetivamente para os princípios da liberdade, da justiça social e da equidade.
Assim, radicalizar a democracia brasileira significa considerar a democracia não apenas como um valor em si, como expressão da dignidade da cidadania, mas também como instrumento de transformação econômica, de valorização social e de aperfeiçoamento do sistema político.
Sendo assim peço a atenção das senhoras e dos senhores senadores para minha proposta radicalização da democracia nos três níveis mencionados.
1º- Radicalizar a democracia econômica, desta forma:
a. Reintroduzir o princípio do planejamento econômico indicativo (para o setor privado) e determinativo (para o setor público) como instrumento do desenvolvimento econômico e social;
b. Fazer a reforma agrária;
c. Estatização do sistema bancário tendo em vista o imperativo de proteger a economia brasileira da instabilidade financeira internacional e torná-lo um instrumento de desenvolvimento econômico e social e não de especulação financeira;
d. Reforçar o sistema empresarial estatal como instrumento de desenvolvimento e, nas crises, de expansão fiscal;
e. Reestruturar o sistema financeiro conferindo ao Banco Central o triplo mandato de controle da inflação, sustentação do crescimento econômico e emprego máximo;
f. Regular o ciclo de produção, emprego e inflação mediante políticas fiscais expansivas ou de contração; reindustrializar o Brasil.
g. Investir pesadamente em ciclos novos de tecnologia, a exemplo da nanotecnologia, de forma a saltar etapas na conquista de tecnologias do futuro.
2. Radicalizar a democracia
social, assim:
h. Introduzir o princípio da renda mínima incondicional de cidadania como base das relações sociais, ou seja, como contrapartida do direito de propriedade privada e que assegure a tranqüilidade jurídica dos proprietários;
i. Estimular o sistema de participação dos trabalhadores nos lucros;
j. Criar mecanismos institucionais de mediação que reduzam o recurso a greves no setor privado;
k. Criar mecanismos institucionais de mediação que evitem greves no setor público, em especial nas atividades essenciais (saúde, educação etc);
l. Criar mecanismos de negociação, dentro e fora do sistema sindical, que equilibrem o interesse corporativo e o interesse geral.
3. Radicalizar a democracia política, com estas iniciativas:
m. Introduzir o financiamento público de campanhas eleitorais, com a criminalização paralela de doação de recursos para financiamento de eleições por parte de empresas, assim como por parte de particulares com quantias acima de R$ 5 mil.
n. Estimular a democracia direta através de plebiscitos e referendos em questões de grande interesse nacional ou social.
o. Estimular a adoção de orçamentos participativos mediante mecanismos que evitem a influência de corporações e lobbies.
p. Fim do monopólio da mídia, com a adoção de medidas como a proibição da propriedade cruzada dos meios de comunicação, a exemplo dos Estados Unidos e de países europeus.
q. Garantia do direito de resposta e do direito ao contraditório, nos meios de comunicação. O direito de resposta é a contrapartida democrática à propriedade privada dos meios de comunicação.
São algumas idéias para o debate.
As senhoras e os senhores podem discordar de uma ou outra dessas idéias, quem sabe de todas, mas não poderão divergir de uma verdade: como está não é mais possível continuar; e, se em vez de radicalizar nas transformações, preferirmos o caminho indicado pelo Planalto, com toda a certeza a próxima erupção não poderá ser contida com os emplastos e os cataplasmas de uma reforma política que não passa de uma contrafação.
Além do que, enquanto nos divertimos com a reforma política, o plebiscito , o referendo e o reverendo, as notícias da economia não são nada alentadoras.
Até duas, três semanas atrás, esse era o assunto que monopolizava os discursos. O que aconteceu com todas aquelas previsões? Aqueles cenários tão dramaticamente desenhados esfumaram-se?
Com as massas nas ruas ou não, continuam claros, meridianos os sinais de que a crise global cobra também da economia brasileira a sua adesão, mesmo que às vezes envergonhada, às políticas do livre-cambismo, da especulação financeira e do Estado mínimo. Da mesma forma, é límpido, cristalino, transparece à luz do dia ou à noite, mesmo que à vezes tentem empaná-la, que o governo não tem, quer tática quer estrategicamente saídas para o enrosco.
Vivemos aos soluços, reagimos espasmodicamente às marolas internacionais que açoitam os nossos costados, e que não são mais tão brandas, se é que um dia foram. Ora, se não existe uma estratégia, isto é, objetivos de longo prazo a serem atingidos, era de se esperar que não houvesse também os meios intermediários, os caminhos, isto é a tática, para atingir as metas finais, últimas.
Enfim: os ventos não ajudam o marinheiro que não conhece o caminho.
E isso não é de hoje. Não se trata de um traço, de uma característica deste governo.
Excetuando o segundo mandato de Getúlio Vargas, o Plano de Metas do Governo Juscelino, as Reformas de Base de João Goulart e, de certa forma, os governos militares e a doutrina da Escola Superior de Guerra sobre os “objetivos nacionais permanentes”, o que vemos é uma absoluta indigência na formulação de um programa estratégico, de um programa para o desenvolvimento nacional que contemplasse toda a complexidade da vida brasileira, nos campos econômico, político e social.
O imediatismo é uma particularidade, o caráter distintivo de todos os governos federais, da redemocratização aos dias de hoje.
O diário, o corriqueiro engolfa-nos, sufoca-nos, tonteia-nos. E, acima de tudo, distrai-nos, desvia-nos do que realmente interessa aos brasileiros e ao nosso país. Como disse há pouco: estamos sendo sequestrados pelas preocupações e pelas iniciativas de curto prazo. Alguém dá um grito, e todos olhamos naquela direção.
As nossas instituições estiolaram, esgotaram-se. As nossas instituições não atendem mais as demandas do país, elas travam, obstaculizam a possibilidade de um desenvolvimento nacional autônomo, justo, que partilhe resultados com todos os brasileiros. As nossas instituições opõem-se à idéia e à construção do Brasil-Nação.
Com tudo isso, ainda achamos que será a reforma eleitoral e uma pauta de projetos desengavetados ou produzidos pela insatisfação das ruas que salvarão o país do atoleiro em que patina?
Esperei com ansiedade, na sequência da reunião da presidente com os governadores e prefeitos, a proposta de Sua Excelência para apaziguar as ruas e redirecionar o país. Foi com profundo abatimento, com um enorme desânimo que vi como primeiro item do tal pacto a “responsabilidade fiscal”. Música suave, melodiosa para os ouvidos dos especuladores, dos rentistas, dos credores, do tal mercado; arranjo dissonante, rascante, perturbador para os ouvidos dos trabalhadores, dos brasileiros em geral.
A nossa presidente reagiu aqui, como reagiram os mandatários europeus frente ao recrudescimento da crise. Em primeiro lugar, acima de tudo, acalmar o mercado; em primeiro lugar, acima de tudo, dizer para os nossos, entre aspas, investidores: “Calma, o de vocês está garantido”.
Responsabilidade fiscal quase sempre significa irresponsabilidade social. Qual é a regra? É a regra dos cortes, da contenção, da austeridade. E quais são as primeiras vítimas dessa política? Obviamente os gastos sociais, aqui entendidos como os investimentos em saúde, educação, transportes, moradia, saneamento.
Ora, se a presidente abre uma lista de compromissos dizendo que vai continuar arrochando os gastos, vai ser austera, vai ser responsável, o que serão dos compromissos sociais que completam a lista do pacto?
Radicalizar a democracia econômica, radicalizar a democracia social, radicalizar a democracia política. Sem essa revolução, sem essa radicalidade podemos até mesmo convocar os estados gerais, como Luís XVI, que os nossos pescoços também não estarão a salvo.
Quem sobreviver, verá.
Com fogo no rabo até preguiça acorda, mas assim repentinamente despertada tende a correr para qualquer lado, para todos os lados, para nenhum lado.