Senhor Presidente
Senhores Senadores
O que vale mais? A vida ou o dinheiro? Deus ou Mamon? Alguns poucos e espertos especuladores ou uma população inteira? Alguns abutres do capital financeiro ou uma nação soberana, com história e futuro?
É realmente interessante observar como estas opções se enfrentam com força e radicalidade na quadra histórica mundial.
E é instigante que seja uma nação sul-americana, a Argentina, não o palco do enfrentamento – pois o teatro desta guerra entre a morte e a vida é planetário -, mas que seja em torno dela, de sua soberania, de sua economia, da vida de sua população que a disputa se estabeleça. E que se estabeleça com clareza solar, para todos os que queiram ver a realidade e crescer em consciência.
Para entendermos o que se passa em torno da crise da dívida da Argentina é preciso trazer ao conhecimento – ou à lembrança – alguns dados fundamentais.
A economia argentina foi destruída pelo neoliberalismo comandado pelo presidente Carlos Menen, que aplicou o conhecido receituário neoliberal através do Plano Cavallo (de Domingo Cavallo, ministro das finanças): cedeu ao fascínio mortal do dólar, estabelecendo a paridade do peso com o dólar norte-americano em 1991, quando este se encontrava em queda.
Em consequência, recebeu um afluxo imenso de capitais especulativos de fundos estrangeiros, fundamentalmente para a privatização e desnacionalização dos serviços de utilidade pública, inclusive a empresa petrolífera nacional, correios, telefonia, gás, eletricidade e água.
Menem cumpriu à risca as ordens do chamado “ajuste estrutural” do FMI e do Banco Mundial, aplicados em todos os países subdesenvolvidos a partir da crise mexicana – e consequente moratória – de 1982.
A primeira ordem era desvalorizar as moedas e orientar as economias para a busca sistemática das divisas necessárias para pagar a dívida.
A segunda ordem era “enxugar o orçamento” para eliminar a “concorrência” da dívida pública (governo central), priorizando a dívida externa.
Em seguida, seria necessário reduzir a demanda interna e privilegiar as exportações: privatizar, cortar salários e aposentadorias. Tudo para pagar juros aos agiotas internacionais.
À época, Menen era incensado pela mídia internacional e pelo sistema financeiro mundial como o melhor presidente entre os países em desenvolvimento do mundo, tendo chegado a dirigir uma sessão conjunta do Congresso dos Estados Unidos. Era um verdadeiro pop star, um garoto propaganda das supostas virtudes de neoliberalismo.
O alinhamento do peso ao dólar só funcionou temporariamente, e, quando funcionou, foi devido a uma formidável regressão social: a indústria argentina foi simplesmente devastada, a produtividade per capita aumentou em 30% de 1991 a 1998, mas o salário médio caiu 3%, A taxa de desemprego passou de 7%, em 1992, para mais de 17% em 2002 e a explosão do subemprego.
Por outro lado, a paridade com o dólar americano derrubou a competitividade das mercadorias da argentina de forma brutal. Entre 1997 e 2001, a taxa de câmbio peso-dólar foi mantida em 1 por 1 e os preços permaneceram estáveis.
No mesmo período, o real brasileiro perdeu 60% de seu valor em relação ao dólar, com um aumento de 25% nos preços internos.
Em consequência, os preços argentinos, em dólar, duplicaram, em relação aos preços brasileiros, com reflexos evidentes no saldo comercial. Perante os Estados Unidos, a paridade peso-dólar garantia certo equilíbrio, mas gerava uma grande deterioração com relação aos países da América Latina – principalmente os do Mercosul e, logo, o Brasil.
A Argentina acabou adotando medidas protecionistas para resistir à invasão dos produtos brasileiros e a intensificação de transações comerciais dentro do Mercosul sofreu um abalo. O Brasil pagou o preço da resistência correta à proposta da Área de Livre Comércio das Américas (Alca), quanto à sua política monetária e ao distanciamento que adotou em relação ao movimento geral de dolarização.
Enquanto isso, a crise argentina se aprofundava. Uma camada estreita da população se beneficiava do modelo e a distribuição desigual se tornou inaceitável. Perdiam os assalariados, os pequenos poupadores e os aposentados.
Ganhavam os bancos, os credores estrangeiros, os capitalistas argentinos do setor de exportações, os grupos multinacionais espanhóis e franceses, assim como seus governos, sem falar de instituições como o FMI e o Departamento do Tesouro norte-americano.
O mercado interno perdia dinamismo e a especulação toma conta da economia. Em plena crise, a Bolsa de Buenos Aires registrou uma alta devido à compra de títulos facilmente renegociáveis em dólar e calcula-se em um total global de 120 bilhões de dólares as fugas de capitais (dos quais, 24 bilhões só entre março e dezembro de 2000) – ou seja, um número mais ou menos equivalente ao da dívida pública.
Em 2000, as exportações argentinas representaram 9% do Produto Interno Bruto, um índice absurdamente baixo. Esse déficit comercial crescente conduziu a Argentina a uma espiral de espoliação.
O déficit comercial “semeou a dúvida” entre os especuladores – tanto quanto à manutenção das taxas de câmbio, como também quanto à capacidade do governo argentino de cumprir seus compromissos.
Nos meses da crise, a tal “perda de confiança” era diariamente quantificada pelas famosas “agências de risco”. Para enfrentar a tal desconfiança dos especuladores, a Argentina passou a adotar aumentos espetaculares das taxas de juros, de maneira a oferecer garantias contra o risco de mudanças e, de imediato, o risco de insolvência.
Várias medidas de ajuste para pagar os credores fracassaram. A última medida, o congelamento das contas bancárias para evitar a saída de capitais levou milhares às ruas em dezembro de 2001. Instalou-se o caos: saques a supermercados, panelaços e protestos nas portas dos bancos.
Foi assim que o neoliberalismo, o fascínio mortal do dólar e os abutres do capital financeiro praticamente faliram a Argentina.
No auge da crise, elegeu-se Fernando de La Rua, que logo renunciou.
No vazio político criado, a Argentina teve cinco presidentes em apenas duas semanas. Entre eles, o peronista Adolfo Rodriguez Saa, que ficou no governo apenas uma semana e decretou a moratória da dívida externa.
Eduardo Duhalde, que o sucedeu, desvalorizou o peso e convocou eleições para 2003, quando foi eleito Néstor Kirchner, com apenas 22% dos votos.
Kirchner manteve o ministro da Economia de Duhalde, Roberto Lavagna. A Argentina resolve sair da crise sozinha, sem os famosos programas recessivos do FMI, que sempre manda que os governos tirem dinheiro da população para pagar os especuladores, como aconteceu na Grécia recentemente.
Com Kirchner, a Argentina resolveu reestruturar as dívidas. Chamou os credores, disse-lhes que o país não tinha dinheiro para pagar mais porque precisava investir em aumento de salários, criação de empregos e planos sociais.
E propôs aos credores a troca de papéis com juros altos e prazo curto por títulos de juros baixos e prazos longos, os chamados swaps. Ou seja, pediu oxigênio para continuar vivendo, porque mortos não pagam dívida. Aliás, também não é o caso de nações morrerem nas mãos de rentistas abutres.
A reestruturação – ocorrida em 2005 e em 2010 – alcançou mais de 100 bilhões de dólares, após a moratória decretada em 2001. Aceitaram negociar e reestruturar a dívida 93% dos credores.
O resultado foi que a economia começou a crescer 8% ao ano. A situação fiscal mudou para melhor e a Argentina obteve um superávit fiscal recorde de 18 bilhões de dólares.
Mas, dos 7% dos credores que rejeitaram a oferta argentina, 0,45% travam uma batalha judicial contra a Argentina para receber 100% do valor dos títulos, sem o desconto de quase 70% aplicado na operação de troca de títulos (swaps).
Esses 0,45% de credores são liderados pelos fundos de “hedge”, cuja tradução é “fundos multimercado”. Em português claro, são os “fundos abutre”: são agressivos, atuam no altíssimo risco, agem com controles mínimos, realizam operações proibidas em outros fundos – preferencialmente derivativos – são restritos a bilionários e – pasmem! – podem assumir a forma de sociedade limitada, protegendo os especuladores.
Os principais fundos abutre que infernizam a Argentina e os argentinos são o Aurelius Capital Management e NML Capital Management (este controlado por Elliot Management, do vampiro magnata Paul Singer).
Juntos estes poucos credores – que, repita-se, representam apenas 0,45% dos credores argentinos e que não participaram da reestruturação da dívida argentina – buscam na justiça norte-americana 1 bilhão e 300 milhões de dólares.
Um dado importante: em 2008, quando explodiu a crise do subprime nos Estados Unidos, havia oito mil fundos “hedge” atuando no mundo, movimentando em torno de 1,3 trilhão de dólares.
Ou seja, os abutres ou – se preferirem, vampiros – que levaram o mundo à crise da qual ainda não saímos, são os que querem agora colocar a Argentina de joelhos, com as bênçãos da Corte Suprema dos Estados Unidos, para sugar até a última gota do sangue de sua economia e do esforço nacional para produzir bens e serviços necessários à vida das pessoas.
Depois do Néstor Kirchner, a presidente Cristina e o povo argentino lutam para provar à Corte Suprema dos EUA sua disposição para negociar, para manter sua economia funcionando e para conservar o crédito internacional do país.
Para ficar apenas num exemplo, o Congresso argentino aprovou, com apoio praticamente irrestrito da oposição, um projeto de lei que reabriu a reestruturação da dívida externa argentina por tempo indeterminado.
Mas a Corte Suprema de Injustiça dos Estados Unidos ficou do lado dos abutres e dos vampiros.
No dia 16 de junho último, a Corte recusou um recurso apresentado pela Argentina para revisar a ordem do juiz Griesa, de pagamento prioritário aos abutres (0,45%) em detrimento dos credores (93%) que participaram da reestruturação da dívida.
Ou seja, determinou que tudo o que a Argentina depositar para pagar os compromissos junto aos credores será automaticamente transferido aos abutres, aos vampiros do capital vadio, aos anjos caídos, a Mamon.
O governo da Argentina anunciou no último dia 26, o pagamento de US$ 832 milhões de títulos da dívida renegociados, sendo que US$ 539 milhões foram depositados em contas do Bank of New York, que está intermediando os pagamentos internacionais, ignorando a Justiça local e a possibilidade de um embargo. Tudo deverá ser transferido aos abutres, diz a Corte Suprema dos Estados Unidos.
Como disse o jovem ministro da economia argentino Axel Kicillof, na ONU, a convite do G77: “ A Argentina quer continuar pagando e não deixam, é um caso insólito. Não se pode aceitar que em três dias um país não tenha outra opção além de ter um dívida nova de US$ 15 bilhões ou de US$ 120 bilhões”, que poderia resultar de novas demandas de credores se a decisão da Corte Suprema foi implementada.
Com isso, a Argentina corre o risco de se tornar inadimplente, entrando no que se chama de moratória técnica no jargão das finanças internacionais.
O mundo se escandaliza. Mas, afinal, a Corte Suprema dos EUA não é supostamente uma instituição para a promoção e distribuição do Direito e da Justiça?
Não. Não é. Mesmo porque, segundo o velho ensinamento de Tio Carlos, o direito é a cristalização da força. Ou, na palavra do seu mais autorizado intérprete, Pachukanis, o direito é uma forma burguesa que atinge o máximo de seu desenvolvimento no capitalismo e que deve ser extinta quando da superação deste modo de produção.
É disso que se trata, de força bruta, ainda que se apresente sob a cândida e falsa aparência de técnica decisional jurídica. Foi assim que os Estados Unidos e o capital agiram com Gaddafi: era um anjo bom quando fazia negócios vantajosos com os europeus e norte-americanos e quando financiava campanhas eleitorais, como a de ex-presidente Francês Nicolas Sarkozy.
Foi assim com Saddam Hussein, financiado pela CIA e apoiado pelos EUA para lançar o Iraque na guerra contra o Irã. Foi assim com a criação da Al Qaeda e Osama Bin Laden. Foi assim com o legado da ação da CIA no Afeganistão para criar problemas para a União Soviética.
Algumas dessas e outras ações que resultaram em destruição de países e de nações foram considerados ilegais pela Suprema Corte dos Estados Unidos?
Não, não foram. Então, porque o ataque dos abutres mais ousados e gananciosos do capital financeiro contra a nação argentina seria reprimido pela suposta guardiã do direito norte-americano?
O que resta de consciência e de civilização se levanta contra os abutres e vampiros do capital financeiro e contra sua “corte gendarme”, a pretensamente honorável Corte Suprema dos Estados Unidos. Grita a Celac, a Unasul, o Mercosul, o Parlasul.
Somos todos argentinos. Como disse a presidente Cristina na ONU: “somos vítimas seriais dos lobistas que especulam sobre países que caem em moratória. Esta é a história da Argentina, mas pode ser a história de outros países em qualquer momento.”
Concluo este pronunciamento com uma convocação aos partidos políticos, aos movimentos sociais, às igrejas, aos jogadores de futebol e às torcidas que estão com as atenções na Copa do Mundo: cerremos fileiras com a Argentina. Defendê-la neste momento é defender a vida contra a força bruta dos agentes da morte, os vampiros e abutres do capital vadio.
É preciso que a voz forte da consciência latino-americana se levante, como se levantou quando em outros momentos da história, como na Guerra das Malvinas, para expressarmos sem titubeios nossa indignação contra os ataques vis que sofrem neste momento a nação Argentina e o Mercosul.
Cerremos fileiras com o Papa Francisco contra o capital financeiro selvagem, contra a força bruta do capital e dos seus juízes, contra Mamon. Neste momento, em especial neste momento tormentoso e difícil, sejamos todos argentinos.