O que votamos hoje é um dos raros gestos de reparação da sociedade brasileira a mais ignominiosa passagem de nossa história: a escravidão dos negros. Ao mesmo tempo, um passo a mais no combate ao preconceito.
O preconceito é uma praga, é uma doença, é uma dessas urticárias difícil de se livrar. O preconceito está tão enraizado em nossa cultura que até mesmo um Joaquim Nabuco, o mais lúcido e ardente dos abolicionistas não escapou de se resvalar por ele.
Seu liberalismo, sua dedicação à causa da extinção da escravatura não o impede de fazer uma dura reprimenda a José Veríssimo, quando este, em artigo publicado logo depois da morte de Machado de Assis, refere-se ao nosso maior escritor como “mestiço”, “mulato”.
Nabuco enfurece-se. Diz ele em carta a Veríssimo:
“(…) Eu não teria chamado o Machado mulato e penso que nada lhe doeria mais que essa síntese. (….)
Machado para mim era um branco, e creio que por tal se tomava; quando houvesse sangue estranho, isso em nada afetava a sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só vi nele o grego. O nosso pobre amigo, tão sensível, preferiria o esquecimento à glória com a devassa sobre suas origens”.
E olha que Veríssimo diz que Machado de Assis foi gênio, apesar de mulato. Mas nem isso Nabuco aceita. Ele exige a exclusão de qualquer referência às origens raciais do fundador da Academia Brasileira de Letras.
Ainda há quem se escandalize quando a Caixa Econômica Federal põe no ar uma propaganda com Machado de Assis retinindo de branco. Nada é gratuito, nada é ao acaso. Estamos fortemente atados à nossa formação, à nossa história, às jabuticabas de nossos quintais.
O que são as nossas instituições e as nossas comunicações se não a mais acabada, a mais miserável, vexatória expressão do conservadorismo, do racismo, do preconceito?
Não é à toa que fomos o último país a libertar os negros da escravidão.
Não é à toa que a abolição da escravatura tenha se arrastado no Congresso imperial por tanto tempo e que ela tenha vindo aos soluços, aos trancos e barrancos, a cada etapa fazendo supostas concessões, verdadeiras fraudes ao objetivo final.
Nunca é demais lembrar que até mesmo alguns dos defensores do fim da escravatura, que se diziam doutrinariamente liberais, queriam que os proprietários de negros fossem indenizados, a pretexto de que os contratos deveriam ser honrados, que os proprietários de negros não poderiam ser privados assim sem mais ou menos de suas posses.
Estão aí os avós de nossos liberais de hoje, que também desfraldam o princípio do pacta sunt servanda ainda que os contratos sejam nocivos aos interesses nacionais.
Oh Deus!
À medida que a escravidão não foi combatida na imprensa, nos púlpitos, na academia não tivemos no país uma cultura antiescravagista.
Não se disseminou no país um sentimento de solidariedade aos negros, um sentimento de horror, de repulsa à barbárie escravocrata.
Pelo contrário, havia uma convivência com aquela bestialidade, com aquela ignomínia como se tratasse da coisa mais normal sob a face da terra.
A omissão da Igreja, neste Brasil à época cem por cento católico, foi fundamental para que não houvesse entre nós essa cultura antiescravagista que resultasse, na sequência, em uma cultura antiracista, uma cultura humanista que inculcasse em nossas elites sentimentos civilizados. Débeis que fossem esses sentimentos, já seria alguma coisa.
Sobre o papel da Igreja na luta contra a escravatura dos negros, diz Joaquim Nabuco, em “O Abolicionismo” :
– Em outros países, a propaganda da emancipação foi um movimento religioso, pregado do púlpito, sustentando com fervor pelas diferentes igrejas e comunhões religiosas. Entre nós, o movimento abolicionista nada deve, infelizmente, à Igreja do Estado; pelo contrário, a posse de homens e mulheres pelos conventos e por todo o clero secular desmoralizou inteiramente o sentimento religioso de senhores e escravos.
No sacerdote, estes não viam senão um homem que os podia comprar, e aqueles a última pessoa que se lembraria de acusá-los. A deserção, pelo nosso clero, do posto que o Evangelho lhe marcou, foi a mais vergonhosa possível: ninguém o viu tomar a parte dos escravos, fazer uso da religião para suavizar-lhes o cativeiro, e para dizer a verdade moral aos senhores. Nenhum padre tentou, nunca, impedir um leilão de escravos, nem condenou o regime religioso das senzalas.
Conclui Nabuco : “A Igreja Católica, apesar do seu imenso poderio em um país ainda em grande parte fanatizado por ela, nunca elevou no Brasil a voz em favor da emancipação”.
Com essa omissão da Igreja, Nabuco antevê uma dificílima tarefa pós libertação dos escravos. Dizia ele: “Essa obra -de reparação, vergonha ou arrependimento, como a queiram chamar – da emancipação dos atuais escravos e seus filhos é apenas a tarefa imediata do abolicionismo.
Além dessa, há outra maior, a do futuro: a de apagar todos os efeitos de um regime que, há três séculos, é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade para a casta dos senhores (…..)”.
E completa:
– Depois que os últimos escravos houverem sido arrancados ao poder sinistro que representa para a raça negra a maldição da cor, será ainda preciso desbastar, por meio de uma educação viril e séria, a lenta estratificação de trezentos anos de cativeiro, isto é, de despotismo, superstição e ignorância”.
Desgraçadamente isso não aconteceu, e o próprio Nabuco, como vimos, resvala no preconceito, é traído pela formação da elite liberal brasileira. Quer dizer, quando os nossos liberais abraçam uma causa humanitária, civilizadora fazem questão de distanciar-se da cozinha.
Se acaso, na juventude, estudantes, tenham agitado a academia, depois de formados, os doutorzinhos incorporam rapidamente os senhorzinhos.
E a mídia? Como se comportavam os nossos peculiaríssimos liberais que eram donos de meios de comunicação, históricamente?
Tirante os jornais que se dedicavam à propaganda contra a escravidão, cuja razão de ser era essa, os demais veículos defendiam o ponto de vista dos escravocratas e também queriam ver os donos de negros indenizados pela perda da propriedade.
Quando os movimentos liberais radicalizam-se, como os casos da Revolução Pernambucana, 1817; Confederação do Equador, 1824; Balaiada, l838-1841; Sabinada, 1837-1838; Cabanagem, 1835-1840; Farroupilha, 1835-1845, os nossos liberais de fancaria horrorizam-se, porque todos esses movimentos tinham em comum a participação popular, a luta contra a escravatura, a criação de uma República como a da nascida da Revolução Francesa. Enfim, modernização das instituições e das relações econômicas e sociais.
Por isso, senhoras e senhores senadores, a política de cotas é uma pequena, modesta ainda insignificante reparação à barbárie da escravidão dos negros, condenados opróbrio por causa da cor da pele.
Existe ignomínia maior do que essa?