O Governo Temer pretende dar ao setor privado a prerrogativa de apagar o Brasil, tal como Fernando Henrique Cardoso fez em 2001. Não estou falando em sentido figurado. A privatização das hidrelétricas aumenta enormemente o risco de racionamento de energia elétrica no país, a exemplo do que ocorreu sob a sanha privatista de Fernando Henrique Cardoso. Assim, não se trata de afirmação abstrata. Temos experiência prática nessa questão. Não fossem as hidroelétricas públicas, a anarquia no setor elétrico patrocinada pelo governo Fernando Henrique teria aumentado dramaticamente os efeitos do racionamento.
Tenciono analisar com o cuidado devido essa proposta de extrema irresponsabilidade de um governo que não foi eleito, e que se tivesse sido eleito certamente não o seria para privatizar um setor tão vital para a economia e a sociedade brasileiras. Permitam-me começar pela água. A privatização do setor elétrico é a privatização de todos os cursos d´água e de todos os reservatórios vinculados às barragens construídas para geração elétrica. Seus donos passariam a comandar um fantástico eco-sistema de imensas implicações sócio-econômicas no país.
Água é vida. Destaco a água não pelo seu valor econômico, mas justamente pelo fato de que ela não deve ser um bem de mercado. Há muito que se fala que a escassez relativa de água no mundo será o principal fator que levará a novas guerras no futuro, tal o desequilíbrio em seu suprimento. Transformar a água, um bem público insubstituível, em fonte de lucro para o setor privado, operado por sistemas monopolistas, é um crime de lesa-pátria. Lembrem-se que nem Fernando Henrique, que cometeu o crime de ter privatizado a Vale do Rio Doce, ousou privatizar hidrelétricas.
Dirão que haverá regulamentação dos monopólios elétricos privados. Na verdade, já devia ter havido, pois existem algumas hidrelétricas privatizadas no país. Contudo, o curso geral dos processos de privatização é enfraquecer ou abolir de forma sorrateira as regulamentações, em atendimento ao “direito adquirido” ou à necessidade de “eficiência” – ou seja, de lucro – do setor privado. A venda absolutamente injustificável das hidrelétricas pelo Governo, se acontecer, será portanto a configuração definitiva da anarquia elétrica e hidráulica no Brasil em confronto com um sistema que funciona de forma adequada e com baixos riscos.
Vejamos inicialmente a questão de um ponto de vista estratégico. No mundo inteiro a questão energética é tratada como estratégica pelos governos, pois a própria soberania das nações passa pela necessidade de se ter controle dos fatores de desenvolvimento e produção. A energia elétrica é o principal desses fatores, pois sem ela não se tem indústrias, comércio e serviços (dentre eles saúde e educação de qualidade).
Todos os países ditos “desenvolvidos” põem em prática essa visão estratégica. As empresas de energia elétrica (e notadamente as usinas hidrelétricas) desses países são todas estatais, inclusive na China e nos EUA. O Governo dos EUA mantém 73% da geração hidráulica sob a gerência do Estado (sendo 48,9% federal). Vale notar que 26,4 % da capacidade hidráulica dos EUA é gerenciada pelo próprio Exército, tal a importância estratégica reconhecida dessa fonte de energia!
A sobrevivência das indústrias depende do fornecimento de energia elétrica regular (sem interrupções) e com qualidade (sem alterações de parâmetros técnicos de fornecimento). Num cenário de fornecimento precário de energia elétrica, as indústrias teriam seus equipamentos de produção danificados e baixa produtividade o que afetaria drasticamente sua eficiência e produtividade. Isso levaria a perda de mercados interno e externo e à perda de empregos no Brasil. Será seguro e positivamente estratégico deixar o controle de fornecimento de energia nas mãos de empresas estrangeiras – estatais chinesas, por exemplo? Será que os interesses de uma estatal chinesa, que venha a ter controle da Eletrobrás, serão os mesmos da indústria nacional?
As usinas hidrelétricas, como já observado, controlam os rios e, portanto, o fluxo das águas a montante e a jusante, com seus múltiplos usos. Quem controla a vazão dos rios tem o poder de influenciar a produção de alimentos via controle de irrigação. Para citar apenas mais um exemplo da importância vital das hidrelétricas, basta notar a capacidade intrínseca que tem na fixação do povo no campo (emigração de agricultores para as cidades), bem como para a própria segurança alimentar de milhões de famílias.
Figura 1: Distribuição da capacidade de geração instalada em hidrelétricas nos EUA.