por J. Carlos de Assis*
Recente entrevista de Lula ao jornal argentino “Pagina 12” mostra o grande fosso entre delírios econômicos e a realidade brasileira contemporânea. Qualquer um que tenha lido meus livros e milhares de artigos sabe da grande admiração que tenho pela figura carismática do antigo líder operário, desde quando o entrevistei pela primeira vez em São Bernardo do Campo depois do fim da primeira onda de greves no ABC paulista em 1978. Entretanto, é difícil engolir nos dias atuais os conceitos econômicos que o ex-Presidente deduziu de sua experiência prática em quase quatro décadas de “aprendizado”.
Não é que Lula não tenha aprendido nada de economia. É, sim, que ele aprendeu a economia errada. A entrevista citada não passa de noções retiradas do receituário neoliberal mediante a absorção de propaganda ideológica travestida de sabedoria e que surgem reforçadas quando também apresentadas como metáforas extraídas do contexto familiar, de forma simplória e sem qualquer espírito crítico. Na verdade, tendo em vista a origem operária do ex-Presidente, não é de surpreender que ele não seja um sábio em economia. O que surpreende é a audácia com que se apresenta como tal em função de sua “prática”.
Cito três pontos cruciais da entrevista. Primeiro, que o governo não deve gastar mais do que arrecada. Segundo, que é necessário fazer ajuste fiscal rigoroso como condição para que as empresas voltem a investir. E terceiro, que a chave do crescimento é a confiança do empresariado num governo sem déficit. Como se vê, esses pressupostos dizem respeito exclusivamente à política fiscal. Contudo, recorrendo a sua experiência na Presidência, Lula mencionou também a necessidade de ampliar o gasto privado a crédito até um nível suportado pela capacidade de pagamento. Vejamos, ponto por ponto.
A grande descoberta keynesiana consistiu em propor que, nas crises de depressão ou recessão, os governos devem gastar mais do que arrecadam. A razão é simples. Numa crise a demanda efetiva privada cai a níveis muito baixos. Com isso, caem também os investimentos privados, pois ninguém vai produzir para as prateleiras. Óbvio que, sem demandaprivada ou pública, os investimentos privados não voltam. Para que voltem é necessário que um setor da sociedade que não depende da demanda monetária retome os investimentos. O único setor que pode fazer isso é o governo, sobretudo para produzir bens e serviços sociais e de infraestrutura.
A objeção que se costuma fazer à proposta keynesiana é que o aumento da dívida, tendo em vista sua monetização, provoca inflação. É um equívoco. Com a economia em recessão ou depressão, o aumento do gasto público financiado por dívida amplia a circulação e não tem qualquer razão para gerar inflação. Duvidam? Veja a economia norte-americananos últimos anos: seu déficit, a partir de 2009, foi de 1,4 trilhão de dólares, 1,3 trilhão (2010), 1,3 trilhão (2011), 1,1 trilhão (2012), 680 bilhões (2013), 492 bilhões (2014). Com esses déficits gigantescos, a economia americana teve a melhor performance entre os países ricos e a menor inflação(na verdade, risco de deflação).
Por que essa política que deu tão certo nos EUA não é aplicada também no Brasil? De fato, ela foi aplicada nos anos de 2009 e 2010, mobilizando grandes investimentos públicos e a demanda agregada, com excelentes resultados: a economia brasileira cresceu 7,5% em 20010. Acontece que o então ministro da Fazenda, Guido Mantega, dando uma guinada neoliberal no fim daquele ano voltou à velha política de altos superávits primários e taxas de juros cavalares segundo a receita do ajuste fiscal. Infelizmente, o ex-Presidente não entendeu bem o que havia acontecido. E legou à sucessora não apenas uma política falida, mas um gestor de política dentro do figurino neoliberal, Joaquim Levy.
A resistência feroz a uma política fiscal expansiva é que uma das consequências dela, no plano monetário, é uma pressão para a redução da taxa de juros. O aperto fiscal, por seu lado, joga os juros para o alto. Numa economia financeirizada como a nossa, onde os banqueiros mandam muito mais que os agentes econômicos produtivos, são as analogias simplórias com a situação familiar que convencem grande parte da população de que a “confiança” do investidor na economia só irá voltar com uma sequência indefinida de ajustes fiscais, enriquecendo os bancos e os especuladores financeiros.
Por último, convém investigar por que ajustes fiscais recorrentes na Europa do euro não conseguem restabelecer “a confiança” do empresariado, a exemplo do que se supõe acontecer nos EUA. Primeiro, convém estabelecer a preliminar de que, numa economia normal, não existe política fiscal e política monetária – existe política fiscal-monetária. Explico: no caso norte-americano, quando o governo faz déficit, ele tem que cobri-lo com venda de títulos da dívida pública. Caso o mercado tente chantageá-lo, cobrando juros altos demais para comprar os títulos, o Tesouro combina com o FED, banco central, para que ele expanda a base monetária, isto é, crie moeda, forçando a baixa da taxa de juros no mercado ao nível desejado.
Na Europa do euro não existe essa possibilidade porque o banco central, BCE, está desvinculado dos tesouros nacionais. Se um país quiser fazer déficit tem que ir ao mercado por conta própria, esbarrando com taxas juros altíssimas que inviabilizam a gestão de sua dívida pública. O resultado é a perda da soberania sobre a política fiscal-monetária, transferida aos órgãos comunitários, ao FMI e ao BCE. Quando falam, entre nós, sobre banco central independente é justamente nessa onda que nos querem jogar. Na maioria dos casos, como no do tripé de Marina da Silva, é mera ignorância dos fundamentos econômicos. Noutros, como de Lula, creio que é pura inocência. Mas não é o caso de seus conselheiros mais frequentes, Meirelles e Palocci!
*Economista, doutor pela Coppe/UFRJ, autor do recém-lançado livro “Os Sete Mandamentos do Jornalismo Investigativo”, ed. Textonovo, SP.