NOTA TÉCNICA
A INCONSTITUCIONALIDADE DO TEXTO DO § 2º DO ART. 101 DO ATO DAS DISPOSIÇÕES CONSTITUCIONAIS TRANSITÓRIAS PREVISTO NA PEC 159
por Hipólito Gadelha Remígio
Prevê o § 2º do art. 101 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias previsto no texto da PEC 159/2015:
§ 2º O débito de precatórios poderá ser pago mediante a utilização de recursos orçamentários próprios e dos seguintes instrumentos:
I – até 75% (setenta e cinco por cento) do montante dos depósitos judiciais e dos depósitos administrativos em dinheiro referentes a processos judiciais ou administrativos, tributários ou não tributários, nos quais o Estado, o Distrito Federal ou os Municípios, ou suas autarquias, fundações e empresas estatais dependentes, sejam parte;
II – até 20% (vinte por cento) dos demais depósitos judiciais da localidade, sob jurisdição do respectivo Tribunal de Justiça, excetuados os destinados à quitação de créditos de natureza alimentícia, mediante instituição de fundo garantidor composto pela parcela restante dos depósitos judiciais, destinando-se:
a) no caso do Distrito Federal, 100% (cem por cento) desses recursos ao próprio Distrito Federal;
b) no caso dos Estados, 50% (cinquenta por cento) desses recursos ao próprio Estado e 50% (cinquenta por cento) a seus Municípios;
Resumidamente, a proposta prevê a faculdade aos entes federados de “utilização (…) I – de até) 75% … do montante dos depósitos judiciais e dos depósitos administrativos em dinheiro referentes a processos judiciais ou administrativos, (…) nos quais” o ente público e suas entidades sejam parte” e de “II – até 20% dos demais depósitos judiciais da localidade”.
Para o segundo grupo, a faculdade é supostamente garantida “mediante instituição de fundo garantidor composto pela parcela restante dos depósitos judiciais”.
EXAME DA MATÉRIA
O texto proposto reserva uma série de inconstitucionalidades que se consolidam na afronta ao direito de propriedade assegurado nos dois seguintes dispositivos do art. 5º da Constituição:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXII – é garantido o direito de propriedade;
O poder de, eufemisticamente, “utilizar” os recursos dos depósitos não configura outra coisa senão um confisco, o que pode ser concluído a partir do estudo da natureza dos dois institutos jurídicos que estão em jogo: o do depósito e o do confisco.
O depósito, por natureza, é um contrato por meio do qual o depositário recebe do depositante um bem móvel, com a obrigação de (i) guardá-lo gratuitamente e de modo temporário, e (ii) de restituí-lho quando lhe for requerido.
Está ele previsto no art. 627 do Código Civil, que assim dispõe:
Art. 627 – Pelo contrato de depósito recebe o depositário um objeto móvel, para guardai; até que o depositante o reclame.
A característica marcante do contrato de depósito é a custódia que obriga o depositário,
Distingue-se da locação e do comodato pelo fato de que o interesse maior é o depositante – a guarda e a conservação do bem – e não do depositário, como ocorre naqueles outros.
Nada obsta que o depositante não seja o proprietário do objeto depositado. Isso ocorre, a título de exemplo, com o depósito judicial, em que o proprietário ainda é pessoa incerta e o juízo determina que o depósito seja efetuado pelo devedor, para posterior definição do destinatário.
Nesse caso, apesar de ter o nome de depósito, o instituto jurídico não configura um contrato (pois decorre da lei e da decisão judicial), ainda que mantenha as virtudes do depósito que não sejam peculiares ao contrato.
Entre as características mantidas estão tanto a responsabilidade do depositário quanto o respectivo dever de devolver os recursos.
Sem esse dever, não é depósito.
Ocorre que, como previsto no texto da PEC, não há qualquer garantia de devolução dos valores, seja dos depósitos em que o poder público seja parte, seja naqueles decorrentes de litígios entre particulares.
A falta de garantia desfigura o depósito e torna a operação um verdadeiro confisco sob o manto de um empréstimo compulsório.
Um detalha que merece destaque constitui uma verdadeira farsa jurídica: nos processos entre particulares está prevista uma falsa garantia: “mediante instituição de fundo garantidor”.
Ora, um fundo, para ser garantidor, deve ter recursos suficientes para fazer face a uma situação possível: de que grande quantidade de depósitos (ou um depósito único de grande porte) componha mais de 80% do total dos depósitos seja, em um mesmo momento, liberada pelos diversos juízos envolvidos.
Nesse caso, quem garantiria a disponibilidade financeira para arcar com a devolução dos valores depositados, se fosse necessário o levantamento de mais de 80% dos depósitos.
O fato mais curioso é que o tal “fundo garantidor”, conforme a proposição, será “composto pela parcela restante dos depósitos judiciais”.
Ora, a parcela restante não é de forma alguma matematicamente apta a arcar com um valor maior do que ela própria.
Isso demonstra, inequivocamente, que a regra proposta sofre do vício da impossibilidade.
Além do vício, configura um confisco contra os destinatários do depósito, uma vez que, ao autorizar o uso do dinheiro, a “utilização” torna-se a efetivação de uma despesa, ou seja, um desembolso sem retorno.
Na prática, se os Estados não têm hoje a capacidade de pagar nem suas dívidas financeiras nem seus precatórios, muito menos terá condições de devolver aos bancos depositários os recursos que deles subtrair.
É bem verdade que a Constituição Federal autoriza o Estado brasileiro a intervir na propriedade privada, quando sua função social não esteja sendo observada (art. 5º, XXIII, CF).
Esses instrumentos de intervenção do estado na esfera privada (como a desapropriação, a servidão administrativa, o tombamento e o confisco) têm o condão de proporcionar que a propriedade cumpra com sua finalidade social.
Preconizam os incisos XXII e XXIII do art. 5º que:
XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
Ressalte-se que o valor que está sendo contemplado na garantia constitucional é a função social.
O mais sacrificante dos instrumentos de intervenção é o previsto na norma proposta: confisco.
Por definição, o confisco é a perda da propriedade privada para o Estado em razão de uma punição.
Como admitir-se, portanto, que haja confisco dos depósitos, ou seja, uma punição, quando o destinatário do depósito não cometeu qualquer ilícito?
Nem mesmo por meio de tributo a Carta Magna admite o confisco.
De fato, o confisco é expressamente proibido pelo que prescreve o inciso VI do art. 150, que veda ao poder público:
IV – utilizar tributo com efeito de confisco
Diante de todo esse quadro, resta observar que a violação de garantia constitucional jamais pode ser objeto nem mesmo de emenda constitucional, como expressamente revela o art. § 4º do art. 60, ao determinar entre as cláusulas pétreas:
§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
(…)
IV – os direitos e garantias individuais.