por Roberto Requião[1]
Uma conspiração que planejou a mudança de regime no Brasil a partir do fim das eleições de 2014. Ela desenvolveu várias frentes de batalha para corroer a governabilidade e popularidade do governo Dilma, para, na sequência, tentar destruir permanentemente a capacidade do Estado brasileiro em prover serviços públicos, especialmente saúde e educação, e proteger os interesses nacionais. Até agora o golpe está seguindo precisamente o roteiro planejado pelos conspiradores, o que demonstra alta capacidade de inteligência e de mobilização de recursos por parte dos conspiradores.
Uma frente de batalha decisiva foi a chamada “Agenda Brasil”, anunciada há aproximadamente 12 meses pelo Presidente do Senado, Renan Calheiros. Essa “Agenda” é a radicalização absoluta do neoliberalismo. Algo muito diferente das posições moderadas que o Presidente Renan costumava defender no passado. Mudou o Presidente Renan, ou foi mudado por alguma pressão misteriosa.
A maioria das proposições dessa “Agenda” foram efetivamente assumidas por antigos caciques do PSDB no Senado. Em especial a que me interessa denunciar no momento, a desmontagem dos instrumentos de financiamento e mobilização Estado Nacional. Hoje a desmontagem do Estado Brasileiro está organizada em uma frente de batalha formada por um novo tripé:
1) Projeto de Resolução do Senado – PRS 84, limita a dívida bruta consolidada da União uma relação de 4 vezes a Receita Corrente Líquida – RCL, permitindo um prazo de 15 anos para ajuste com redução mínima anual 15 avos. Esse projeto também busca limitar a dívida consolidada líquida a 2 vezes a RCL.
2) O Projeto de Lei do Senado – PLS 555, chamado malandramente de “Estatuto das Estatais”, já aprovado, e
3) A Proposta de Emenda Constitucional – PEC 247/2016, que mantêm os gastos e investimentos públicos paralisados por 20 anos
Esses três projetos tem o objetivo claro de impedir a existência de um Estado de Bem Estar Social que estava sendo construído no Brasil ao menos desde a Constituição de 1988. Mas eles vão muito além, esses projetos buscam destruir qualquer capacidade de mobilização de recursos do Estado Nacional para fazer política pública, defender o território e investir. Os investimentos públicos e também o apoio do Estado aos investimentos privados será praticamente nulo, caso sejam aprovados.
Neste momento, me interessa em particular o projeto PRS 84, até porque é o menos conhecido desses projetos e está próximo de ser votado no Senado.
Esse projeto visa limitar a capacidade da União emitir títulos de dívida pública. Aparentemente, para os leigos em finanças públicas, é uma boa medida. Porém, é preciso olhar os detalhes para perceber a má intenção do projeto.
Uma das malícias do projeto está em não levar em consideração as múltiplas funções da dívida pública. É conhecida a função da dívida pública em “financiar” os gastos e investimentos públicos. Porém, parte significativa da dívida pública é emitida com outras funções:
1) Contrapartida da compra de moeda estrangeira para formar reservas cambiais. Em volumes pequenos, o todos os governos precisam acumular reservas cambiais para ter um mínimo de soberania econômica e assim estar preparado para crises econômicas e pressões diplomáticas internacionais. Mas em alguns casos, alguns países acumulam reservas muito maiores. As grandes potências econômicas emergentes, como o Brasil, precisam comprar grandes reservas de dólares também para manter o câmbio competitivo para sua indústria e agricultura. Se não o faz, o câmbio se valoriza e o país sofre uma avalanche de importações que destruirá sua indústria e talvez parte da sua agricultura, em um processo que os economistas chamam de “doença holandesa”. Ao comprar dólares para formar suas reservas, o governo precisa emitir títulos de dívida, aumentando sua dívida bruta consolidada ao mesmo tempo em que aumenta suas reservas cambiais. Isso é positivo para o país, por proteger sua indústria, e não tem efeitos negativos uma vez que a dívida pública líquida não aumenta por isso, especialmente, quando a política monetária é bem conduzida. Mas mesmo se ela é mal conduzida, com juros absurdamente altos, a desvalorização cambial tende a compensar os juros irresponsáveis de um Banco Central capturado pelos interesses bancários. Dessa forma, emitir dívida pública para comprar divisas estrangeiras é sempre bom para a economia do país e não aumenta da fato a médio e longo a dívida que importa, que é a dívida líquida.
2) Abastecer a demanda do público e dos bancos por segurança financeira em momentos de crises econômicas ou crises de confiança. Quando um país vive momentos de crise econômica ou crise financeira, as pessoas buscam colocar seu dinheiro nas aplicações mais seguras, que quase sempre são os títulos públicos nacionais ou estrangeiros de curto prazo. Ao fazerem isso, vendem ações, títulos de longo prazo e compram títulos de curto prazo. Se esses títulos públicos de curto prazo forem nacionais, as taxas de juros de longo prazo aumentam pela lei da oferta e da procura. Se forem títulos estrangeiros, essa demanda poderá levar ao risco de ataque cambial, desvalorização descontrolada e mais instabilidade financeira. Nesse caso, o governo é obrigado a aumentar também as taxas de juros de curto prazo para tornar menos atraente a aplicação em moeda ou títulos estrangeiros. Nesse processo, um volume muito grande de recursos especialmente aqueles que estavam em aplicações financeiras nos bancos privados serão alocadas em títulos públicos de curto prazo. Assim o governo precisará emitir grandes volumes de títulos públicos de curto prazo para estabilizar suprir a grande demanda do mercado e a dívida pública aumentará, mesmo que não tenha havido qualquer modificação nos gastos público ou tributação.
Esse processo de fuga de títulos de longo prazo ou de títulos nacionais, geralmente implica em implica em redução das aplicações financeiras nos bancos, especialmente depósitos a prazo, além de aumento da inadimplência. Se a crise for intensa ou prolongada, haverá aumento do risco de falência bancária ou, no mínimo, esgotamento da disposição dos bancos em financiar a economia. Dessa forma, o governo será abrigado a fazer empréstimos aos bancos privados para dar suporte de liquidez e impedi-los de falir. Todos esses empréstimos terão como contrapartida títulos bancários privados. O dinheiro emprestado será aplicado pelos bancos em dívida pública que, assim, aumentará na mesma proporção. Mas a dívida dos bancos para com o Banco Central aumentará da mesma forma em razão dos títulos privados comprados pelo Banco Central, que são contrapartida ou garantia dos empréstimos. Nesses casos, a dívida pública consolidada bruta pode sofrer aumentos significativos como foi o caso do PROER feito por FHC ou como aconteceu nos EUA e na Europa na crise de 2008 com o TARP e os “afrouxamentos quantitativos”[2] posteriores. Porém a dívida pública consolidada líquida pode não aumentar com essas políticas, porque Banco Central está apenas trocando dívida pública por dívida privada. A médio e longo prazo o efeito final sobre a dívida pública dependerá se o Banco Central aceitou ou não títulos podres como garantia dos seus empréstimos. O que foi em parte o caso do PROER no governo FHC e do TARP, no final do governo Bush. Esse aumento de dívida bruta nada tem a ver com os gastos públicos, geralmente nem implica aumento de dívida líquida, se conduzido honestamente. Portanto, proibir emissão de dívida pública tornaria o país refém de crises incontroláveis em troca de nada, de uma bobagem, uma meta fiscal sem substância.
3) Apoiar bancos ou empresas públicas em políticas públicas. O governo Lula emitiu grandes quantidades de dívida pública para prover fundos ao BNDES financiar uma política de recuperação do investimento que foi muito bem sucedida e que tirou o Brasil da crise sem nenhum custo fiscal. Isso mesmo sem nenhum custo fiscal. Como se pode ver no gráfico abaixo, a dívida pública consolidada líquida em relação à Receita Corrente Líquida – RCL voltou em 2011 ao mesmo patamar que estava em 2008 e em 2012 já estava significativamente menor, apesar dos juros mais altos do mundo e do baixo crescimento em razão da crise internacional. A dívida consolidada bruta subiu no período, mas foi acompanhada por um significativo aumento dos ativos da União em reservas cambiais e em dívidas do setor privado com relação ao governo. Outra política muito bem sucedida foi a aquisição de ações da Petrobras em troca dos direitos de exploração do Pré-Sal. Isso só foi possível com a emissão de dívida pública para cobrir a demanda por investimentos da Petrobras no primeiro momento. Antes que um desinformado diga que as ações da Petrobras caíram nos últimos 3 anos, devo lembrar que isso aconteceu em razão da violenta campanha midiática e judicial contra a empresa, inclusive parando obras fundamentais e financiamentos que ela precisava e não foi por causa dos investimentos no pré-sal. Essas políticas de emissão de dívida pública para apoiar o financiamento produtivo não afetaram a dívida líquida, mas aumentaram a dívida bruta, e seriam impossíveis se aprovado o PRS 84.
A malícia do PRS 84 não está apenas em desconsiderar que colocar um limite sobre a dívida pública bruta consolidada desconsidera que a dívida pública não tem como objetivo apenas “financiar” os gastos públicos. A própria meta definida pelos caciques do PSDB, de relação Dívida Bruta sobre RCL de 4, é completamente irrealista. Foi um chute, um blefe. Nenhum grande país soberano jamais se sujeitou a tal artifício para limitar a própria soberania. Apenas países irremediavelmente sujeitos a supervisão estrangeira, como a Grécia do euro, aceitariam tão limitação artificial para a política pública.
Como se pode ver no gráfico acima, nos últimos anos do governo FHC, esse indicador chegou a quase 6 e nem por isso ninguém achou esse número fosse alto demais. Por sorte o governo Lula reduziu o indicador, para 4,5. Mas descer abaixo disso é absolutamente impossível com políticas de contenção dos gastos públicos, em especial com o nível absurdo das taxas de juros no Brasil.
O PRS 84 também busca reduzir a relação dívida consolidada líquida e Receita Corrente Líquida para 2. É um patamar bastante ousado também, pois no governo FHC ele chegou a 4,4.
[1] Requião é Senador da República no segundo mandato. Foi governador no Paraná por três vezes, prefeito de Curitiba e deputado estadual. É graduado em direito e jornalismo com pós graduação em urbanismo e comunicação.