Eleito para presidir a Representação Brasileira no Parlamento do Mercosul, o Parlasul, reafirmo a minha paixão sul-americana. Brasileiro de nascimento, sou também um cidadão do continente. Uma identidade nem sempre fácil de ser portada, reconhecida ou respeitada. Somos ainda fortemente condicionados pela herança colonial que, entre tantos legados, marcou-nos com o europacentrismo e com essa perniciosa inclinação a menoscabar tudo o que é nacional, logo, tudo o que é continental. Sob a luz comercial, aduaneira, não se nega que avançamos, desde o Tratado de Assunção, há 20 anos. Os números são consistentes, pelo menos na escala continental. Mas, pergunta-se, além do comércio, avançamos? Além das trocas e vantagens comerciais o que mais nos aproxima? O que mais nos une, agrega e fortalece? Não é uma resposta que se tenha na ponta da língua. Os economicistas, e alguns diplomatas entusiasmados com o novo papel de caixeiros viajantes, talvez exultem e satisfaçam-se com a contabilidade, com os números, com o balanço comercial desses 20 anos. É o que basta? A integração é tão simplesmente econômica? Sustenta-se, consolida-se, pereniza-se uma integração fundada apenas no comércio, em negócios? Não acredito. E caso alguém duvide, que abra os olhos para o que acontece na União Européia, tido por muitos como nossa referência para a construção da União Sul Americana. Como presidente da Representação no Parlasul, comprometo-me a fazer de tudo para que o Mercado Comum do Sul ultrapasse os estreitos limites comerciais e se projete como uma grande aliança de solidariedade, de cidadania, de integração cultural, de fusão de culturas, da busca comum de caminhos que levem à superação do atraso e das desigualdades, nacionais e continentais. Mas é ainda significativa a distância entre nós. Que conhecimentos temos um dos outros? Que sabemos da história de nossos vizinhos? Excetuando-se alguns pontos turísticos que cada país cultura e divulga, a rivalidade futebolística nem sempre saudável, a carta de vinhos e algumas informações gastronômicas, que mais sabemos uns dos outros? Na verdade, quando não estamos ensimesmados, olhamos para o Norte como se de lá viesse a luz. Meses atrás, quando se discutiu a revisão do tratado de Itaipu, manifestaram-se, no Congresso e na mídia, desapreços ao nosso parceiro na construção da hidrelétrica, como se o Paraguai fosse dispensável, por ser economicamente pequeno, territorial e demograficamente pequeno. Nessa toada, o Uruguai também seria dispensável. Assim como possíveis futuros parceiros do bloco, como o Equador, a Bolívia e até mesmo o Chile. Se o critério para a formação do bloco fosse a extensão territorial, o número de habitantes e o Produto Interno Bruto não teríamos, por exemplo, a União Européia. Unidade e complementaridade. Unidade e consciência das diferenças. Unidade e respeito às realidades locais. Não vamos construir o Mercado Comum do Sul, não vamos avançar na unidade latino-americana com cacoetes imperiais, com tentações coloniais. De passagem pelo Brasil, há anos, o professor Lester Thurow, um dos papas da globalização, falando sobre as possibilidades de se viabilizar o Mercosul, fez um distinção entre mercado comum e área de livre-comércio. As áreas de livre-comércio, explicava, são circunstanciais, não implicam em compromissos mais abrangentes entre os países, não os integram. Se o Mercosul for apenas uma área de livre-comércio, advertia, fracassará, inevitavelmente. Para ter sucesso, dizia, o Mercosul precisa ser um mercado comum, o que quer dizer que Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai devem se dispor a abrir mão de alguns poderes de governo; harmonizar regras; pagar impostos para ajudar áreas mais pobres. E concluía: se não for possível pegar dinheiro do imposto brasileiro para colocar em outro país do bloco, o Mercosul não tem futuro. O que queremos? A quebra das cancelas nas aduanas para que comerciemos isso e aquilo, sem enraizar compromissos ou um enlace de nossos destinos? Nesse mundo em ebulição, nesse mundo às voltas com as estripulias do capitalismo financeiro e com os desarranjos provocados pelo neoliberalismo, não podemos navegar solitariamente e muito menos orbitar na dependência dos países imperiais. A União Européia desenvolve um esforço enorme, para impedir que a crise desagregue, debilite e imploda o bloco. O primeiro-ministro da Rússia, Wladimir Putin, anuncia os primeiros passos para a formação de um bloco econômico que reúna os antigos países da União Soviética, para fortalecer política e economicamente os países do oriente europeu em suas relações com o ocidente e com a China. E esta, por sua vez, busca, se não a formação e um bloco asiático, pelo menos acordos regionais com os países do oriente. Enfim, vivemos um tempo adequado para que avancemos na consolidação da unidade sul-americana. Tempo, também, para que discutamos os pressupostos em cima dos quais vamos construir essa unidade. A crise do capitalismo financeiro, a débâcle dos principais dogmas do neoliberalismo são advertências, são gritos muito claros sobre que caminhos evitar. Antigas e sólidas verdades, desprezadas pelo deslumbramento com o mercado, esse baal que tanto encantou os néscios, afloram e convidam-nos a pensar. Pensar, esse exercício que ficou tão fora de moda, que caiu em desuso desde aquela parvoíce sobre o fim da história e o triunfo do mercado, per omnia saecula saeculorum. E aqui retomo uma corrente de pensamento que foi colocada no índex pela cruzada neoliberal, no desatinado, fanático ardor de impor a sua bíblia. A corrente de pensamento que se formou em torno da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, a mítica CEPAL. Raul Prebisch, Celso Furtado, Aldo Ferrer, o recentemente falecido Antônio Barros de Castro, Medina Echavarria, Carlos Lessa, Octávio Rodrigez, Maria da Conceição Tavares e Aníbal Pinto compõem o mais brilhante grupo de teóricos e pensadores a formular uma proposta que remisse a América Latina do atraso, da dependência, da miséria, do obscurantismo. Esse grupo sacode o continente da pasmaceira, do conformismo, da subserviência colonial, subverte as acomodadas academias e propõe um caminho para o desenvolvimento. Eles mudaram a forma de a América Latina se olhar, identificaram as origens de nosso subdesenvolvimento e apontaram um caminho possível para a superação da pobreza e do atraso. Com referências em Keynes, na crítica ao liberalismo e às suas teorias sobre o comércio internacional, eles criaram uma nova escola de pensamento. Os golpes militares que desgraçaram o continente nos anos 60 e 70, como caudatários dos interesses imperiais, sufocaram o pensamento cepalino e o substituíram pela indigência intelectual e a crueldade social dos Chicago’s Boys. E a idéia da unidade latino-americana foi suplantada pela proposta de acordos bi-laterais de vassalagem aos Estados Unidos, de que a proposta da ALCA é mera continuidade ou simples eufemismo. No entanto, da mesma forma que, internacionalmente, a crise neoliberal repõe o pensamento de John Maynard Keynes, que havia sido esconjurado desde que os neoliberais o substituíram pelos operadores do Lheman Bank, e pelos geniais rapazes das agências de avaliação de riscos, vemos na América Latina o mesmo movimento em direção às teses cepalinas, revistas à luz da realidade de hoje. Que idéias são essas? A idéia que rompe com a doutrina que reservava à América Latina, como periferia do sistema econômico mundial, o papel de produtora de alimentos e matérias-primas para os centros industriais. Na divisão internacional do trabalho, o nosso destino era o atraso. O pressuposto de que havia sim espaço para a industrialização dos países novos, como dizia Prebisch. Que nos indicava, de modo decisivo, o caminho da atividade industrial e do desenvolvimento. Que a construção nacional não se dá apartada do mundo, que se integra e interage com ele, mantendo-se, no entanto, o firme comando do próprio destino O conceito de que o desenvolvimento é sempre um processo endógeno, dentro de um espaço determinado, fundado nas próprias forças, com a participação solidária da sociedade, com a distribuição dos benefícios e com claros fundamentos de justiça social. O entendimento de que ao Estado reserva-se um papel insubstituível nesse processo, organizando energias, talentos e recursos, construindo a infraestrutura que servisse de base de lançamento para as iniciativas, estimulando pessoas e idéias e projetos, mediando, com o mais radical senso de justiça, as contradições sociais. A concepção de que o desenvolvimento exige a transformação da estrutura produtiva, com industrialização, ciência e tecnologia. O juízo definitivo de que não há desenvolvimento sem transformação produtiva e sem conhecimento. O convencimento de que a economia interna e os recursos próprios são fontes básicas das transformações, que crédito e investimentos internacionais são complementares e não substituem a economia nacional e a poupança interna. A contraposição às teses de que não havia mais espaços para as transformações nacionais ou regionais, que a era das revoluções nacionais encerrara-se, restando-nos a vassalagem, a dependência. A compreensão de que a construção da identidade nacional completava-se com a construção de uma identidade latino-americana. Que a existência de estados nacionais fortes, desenvolvidos, democráticos, socialmente justos implicava a existência de uma América do Sul forte, desenvolvida, democrática e socialmente justa. A convicção de que essa construção não poderia ser delegada às tais “forças livres do mercado”, porque em nossa região existem profundos desequilíbrios, desigualdades dolorosas e que esses desequilíbrios e essas desigualdades só poderiam ser enfrentados com políticas públicas compartilhadas, pelos Estados. Pois bem, todo esse pensamento começa a ser sufocado com a seqüência de golpes militares que varreram e infelicitaram a América do Sul nas décadas de 60 e 70, tornando o continente caudatário dos interesses econômicos e políticos norte-americanos. E a asfixia completa-se nos anos 80/90 com o triunfo neoliberal, que tenta impor ao planeta terra um só pensamento, uma só ideologia, um só senhor. O Senhor Mercado. No entanto, depois da crise de 2008, que desmoralizou e ridicularizou os mitos neoliberais, essas velhas e boas idéias, essas já esquecidas verdades voltam a circular. A crise oferece-nos a oportunidade de retomar o caminho interrompido. O Parlamento do Mercosul é um espaço adequado para o debate, para a formulação, para avivar verdades esquecidas, para transformar as intenções de integração em atos de integração. A consolidação do Parlamento é condição essencial para a consolidação do Mercosul. O Parlasul é o meio que faltava para fazer do Mercosul uma realidade incontestável, um protagonista forte, altaneiro nas relações com outros países e com outros blocos comerciais. Esse é o meu compromisso como presidente da Representação Brasileira no Parlamento do Mercado Comum do Sul. Preciso e espero contar sempre com o apoio das senadoras e dos senadores para o bom desempenho desta tarefa. Obrigado.
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